segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Vida Simples ao Extremo!


Durante mais de três meses minha vida se limitou a remar, acampar, fazer comida, escrever e pensar... observei a Natureza ao meu redor, não como um reles expectador, mas como outra das tantas vidas que pulsavam naquele rio de tão diversificadas feições. Estava lá, limitado pelas margens e barrancos, conduzido pelas águas assim como os animais que o habitam há tantos séculos... hoje nem tantos e nem tão diversificados como no passado, quando o rio era selvagem e os povos indígenas não o molestavam com o lixo, as barragens, a pesca predatória, as queimadas, o desmatamento, o esgoto e os produtos químicos jogados em suas águas.


Meditei muito a respeito do supérfluo que nos pressiona ao consumismo e nos encaminha para um futuro assustador, enquanto o mundo discute suas vaidades em não ceder para não parecer fragilizado diante de seus vizinhos dessa aldeia global em que se transformou agora. Não entendi muito bem por que parece tão difícil para a maioria dos homens o que é tão simples para mim, como a vida no rio...


Acordava cedo, à primeira luz do dia ou ao cantar dos pássaros no alvorecer. Em poucos minutos já estava de pé, ajeitando as tralhas do acampamento na canoa, fazendo minha primeira refeição, singela e agradável, sob árvores frondosas, ou diante de um dos incansáveis espetáculos da Natureza, tingindo de cores o céu e as águas...


Logo, a canoa deslizava suavemente pelo rio, abrindo pequenas ondas ao seu redor, quebrando o espelho e perseguindo o Norte ou o Leste, não importava o destino, pois o único caminho que eu tinha me levava ao mar, distante e misterioso como todo meu percurso. Meus olhos registravam cenários efêmeros, que logo se dissipavam, dando lugar a outras pinturas que minha câmera se recusava a preservar. Às vezes eu nem tentava fotografar ou filmar, extasiado pela beleza e encantado pela sonoridade dos cantos dos pássaros...


O ritmo constante das remadas agia como um bálsamo ou um alucinógeno, levando-me a pensares não imaginados, conduzindo minha mente para além da mediocridade humana... em nenhum momento pareceu-me monótona a vida no rio; nada se repetia, ainda que as idéias fossem as mesmas, havia sempre uma transformação que conduzia a novas conclusões.


Nunca almoçava; não havia tempo para interromper a "caminhada", pois "navegar era preciso" e "chegar a algum lugar no mapa" significava cumprir a missão daquele dia. Bebia muita água, mais de quatro litros por dia; comia castanhas e granola, às vezes um doce, e isso me bastava. À tardinha, quando o sol se aproximava do horizonte, era hora de buscar abrigo: uma pequena praia ou um barranco protegido sempre estavam a me esperar e para lá me dirigia.


Sempre sabia que aquele era o lugar escolhido, pois a canoa se dirigia a ele quase espontaneamente; eu mal conduzia o barco e ele parava no lugar apropriado. É curioso como a Natureza provê tudo o que precisamos para sobreviver em segurança. Muitos me disseram: "vai ser roubado!", ou "vai naufragar", ou ainda "cuidado com os bandidos!". Que bandidos?


Montava meu acampamento sem pressa, pois o dia é longo e o tempo passa devagarinho para quem não está na correria das cidades... esse foi o mais longo ano de minha vida... e o mais expressivo, mais belo, mais gratificante, mais produtivo em todos os aspectos. O fogareiro fazia uma comida simples e gostosa, com alguns condimentos que levei... comia devagar, saboreando cada porção de alimento, imaginando que seus nutrientes me fariam recuperar as energias perdidas nas remadas. Bebia um refresco, ou apenas água...


Antes de me recolher lavava as roupas e os materiais de cozinha, e isso também nunca me incomodou. Um pequeno aparelho enviava um sinal para meus amigos e a família, confortando-os com a mensagem de que eu estava bem. Revisava as fotos do dia, as filmagens, olhava os mapas e me situava no globo dos homens, que pouco signficava para mim. Antes de dormir escrevia minhas memórias, meu essencial "diário de bordo".


Pela manhã o ritual era mais simples: desmontar a barraca, colocar a canoa na água, tomar um leite com "ovomaltoddy" ou granola, desfazer as marcas que deixara de minha presença nas areias da praia ou nas folhas do barranco, e seguir viagem novamente. Ah... estava me esquecendo de minhas necessidades fisiológicas! Um pequeno buraco na terra, longe da água, umas folhas, sabão antissético e um banho de rio; escovar os dentes e... pronto!


Assim foi minha vida nesses 99 dias que se passaram desde que saí de São Roque de Minas, exceto os três meses que corri atrás de patrocínio inutilmente... se quero viver assim? não sei... talvez meu espírito inconstante busque novos desafios, novas aventuras, novas experiências antes que eu me acomode em um pequeno esconderijo no meio do mato, no alto da montanha, na escuridão das matas, em algum lugar distante e desabitado, onde possa terminar meus dias... talvez eu não possa escolher o meu destino... mas vocês sabem o que eu quero nesse final e, quem sabe, se compadeçam de mim e deixem-me partir em paz...

sábado, 26 de dezembro de 2009

Ponte sobre o rio São Francisco, entre Petrolina e Juazeiro

Foto de Avelar Amador, um grande amigo que encontrei em Petrolina, e que me deu apoio desde Pernambuco até à chegada na foz do São Francisco, em Piaçabuçu!

Frustrações e o futuro...


Entre tantas alegrias por realizar meu grande projeto, é certo que ficaram algumas frustrações, decepções e tristezas por não ser compreendido muitas vezes... isso é natural; afinal, um ano dedicado a um projeto não é pouco! E o que interessa ao povo é mesmo aquele "axé" das músicas "bregas", ou o brilho opaco das celebridades fabricadas pela equipe global, ou ainda a trivialidade cotidiana de permanecer estável e seguro na sua própria zona de conforto...


Frustração de não ter visitado o Parque Nacional de Peruaçu, por exemplo. A Sociedade Brasileira de Espeleologia, à qual estive filiado por tantos anos e de cujos eventos participei tantas vezes, não me deu nenhum apoio, negou-me até uma resposta ao meu pedido de incluir minha expedição em seu calendário! Deixei de ir ao parque... uma pena, já que ele é desconhecido da maioria dos brasileiros e até mesmo dos amantes das cavernas, como eu. Nem mesmo posso citá-lo em meu livro...


Decepção por não receber um único patrocínio de nenhuma dessas grandes empresas que alardeiam seu compromisso com o meio ambiente, mas ignoram um projeto de tamanha expressividade e envergadura, em defesa de nosso maior patrimônio hídrico nacional. Muitas sequer responderam ao meu pedido de patrocínio; outras apenas declinaram alegando não se adequar o projeto às suas linhas de atuação. Isso desnuda suas verdadeiras intenções de transformar em lucro até suas atividades preservacionistas; se não houver incentivo fiscal, não há patrocínio! Ou seja, mesmo quando apóiam alguma iniciativa em favor da Natureza, quem paga a conta é o governo, com sua renúncia fiscal, ou seja, "nós pagamos!".


Tristeza por ver que nossas autoridades, em todas as esferas da administração pública, estão completamente despreparadas e equivocadas ao lidar com as questões do meio ambiente. Não existe nenhum projeto de revitalização, apesar das propagandas governamentais! Tristeza também por perceber que aqueles que me deram a mão em situações difíceis, muitas vezes desapareceram assim que eu parti para outros estados ou municípios que não os seus.


Quem apóia o faz sem interesses pessoais... mas isso quase não existe! O interesse está sempre acima da solidariedade! E isso é difícil de aceitar para quem está sozinho em um rio extenso e desconhecido, como o São Francisco... desconhecido sim, não por mim, mas pela sua população inteira! Cada lugar que visitei, em cada entrevista que dei, as pessoas me perguntavam, não como estava o rio em toda a sua extensão, mas como seu lugarejo cuidava dele, ou melhor, "como eu sou percebido por vocês?". Um rio não é um mosaico de micro-naturezas que não se relacionam; é um ecossistema complexo e integrado onde as ações humanas causam efeitos cumulativos em tudo o que vem depois.


Esse imenso e fantástico rio continua órfão de seus próprios hóspedes e habitantes!


Mas minhas frustrações, tristezas e decepções não diminuem em nada  os resultados que alcancei... pelo contrário, a despeito de tamanho descaso e desconsideração, consegui atingir os meus propósitos! E isso hoje me basta, por enquanto; pois uma nova batalha tenho à minha frente, que é a de transformar todo esse material coletado em um documento definitivo!


E ainda tenho alguns poucos grandes amigos que me acolheram, me deram as mãos, ativaram sua rede de contatos e permitiram que minha aventura se transformasse na mais importante experiência de minha vida! A todos eles, a minha eterna gratidão!


Publicarei brevemente uma postagem exclusivamente voltada a destacar essas pessoas!

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Piaçabuçu - Alagoas: foz do rio São Francisco

Missão Cumprida!
A sensação de terminar um projeto tão longo, com tantas e diferentes dificuldades, sem patrocínio e apoio oficial de nenhuma organização, desconhecido pela grande mídia, é indescritível! Consegui vencer por meu próprio mérito e pelo apoio conquistado pelo caminho...
Os três últimos dias foram particularmente difíceis... depois que deixei aquela linda praia de Gararu segui em direção a Porto Real do Colégio e Propriá. Saí de madrugada, ainda noite, para evitar os fortes ventos e a agitação do rio, cada dia mais intensos.
O rio estava plácido, dormindo, como diz a lenda, e o barco deslizava rápido por aquele lago noturno. Logo passei por Traipu... fiz umas fotos sem graça e segui adiante. O que mudou muito na paisagem, desde Xingó, é que agora as ilhas eram pequnas, baixas e cobertas por uma densa vegetação aquática, arbustos verdes...
O rio voltou a ser largo, mas a água continuava límpida e verde esmeralda. No entanto, essa vegetação aquática, muitas vezes submersa e formada por algas longas, quando exposta ao sol apresenta cheiro desagradável.
Quando me aproximei de Porto Real do Colégio ouvi fogos e muita música, embarcações com grandes velas coloridas e "gaiolas" de todos os tamanhos. O barco da "família real" já havia passado por mim e quase me afundara na noite anterior. Por isso, fiquei atento, tentando evitar as fortes ondas que eles fazem ao passar. Havia uma grande estátua no meio do rio e parei de remar para fotografá-la; isso me custou caro, pois as ondas eram fortes, e tive que fazer manobras rápidas para evitar ser apanhado por elas...
Não consegui parar na cidade, nem atravessar até Propriá, porque a algazarra era demais para meus hábitos solitários e o rio estava violento. Pouco antes da grande ponte da BR 101 parei sob umas árvores para descansar. Amarrei o barco como pude e fiquei apreciando o vai-e-vem de barcos, alguns rápidos e movidos a vela, outros lentos, com motor de rabeta, rangendo e lutando contra a correnteza e as ondas.
Fiquei algumas horas parado, analisando as alternativas: por baixo da ponte, a densa vegetação e inúmeras ilhas não me permitiam compreender o caminho; pensei em passar a noite ali, pois o barco estava estabilizado e era um local tranquilo e protegido.
Porém, na ânsia de prosseguir e chegar o mais breve possível até o final, decidi arriscar a sorte e prosseguir. Eram 12 horas. Uma hora e meia depois, lutando contra as águas raivosas do rio, sendo jogado ora para um lado, ora para outro, fazendo manobras bruscas para evitar que o barco girasse sobre si mesmo e eu perdesse o controle, usando todas as minhas forças inutilmente, eu andara menos de dois quilômetros e apenas passara por baixo da ponte... os sons da cidade ainda eram fortes.
Tentei encostar em um barranco e acampar, mesmo em um pasto, mas a canoa batia na lama do barranco sem vegetação e as formigas me devoravam enquanto eu tentava encontrar um meio de retirar as tralhas. Depois de algumas tentativas frustradas, desisti e voltei para a tormenta. Lembrava-me do filme "Mar em Fúria"... esse era o meu "rio em fúria", mantidas as proporções... meu barquinho, uma "casca de noz", era jogado sem piedade!
Progredia de forma insignificante, mas precisava encontrar algum lugar protegido no meio daquela barreira de terra destruída. Uns 200 metros adiante vi uma pequena moita de calumbi e capim, e me apeguei a essa possibilidade. Remava com todas as minhas forças e, alguns minutos depois, joguei o barco de lado, forçando-o contra o capim e lá me refugiei, apesar dos espinhos e insetos.
Era evidente a ação protetora daquela simples vegetação para o barranco! As ondas e a correnteza eram domados por uma pequena moita de arbustos... mas os estúpidos fazendeiros continuam a devastar até o último pé de capim, mesmo que o rio venha a cobrar o seu tributo, levando as terras para dentro de seu leito e retirando o medíocre ganho de espaço conquistado pela ganância desses homens.
Amarrei precariamente o barco e me ajeitei como pude no pequeno espaço interno. Sabia que a espera seria longa e cansativa, pois o rio só adormece depois da meia-noite. E ainda teria que esperar pela luz da lua, cada vez mais tardia... já era quarto-minguante e sua tênue luminosidade ainda permitia navegar.
Saí de lá às duas horas da madrugada, sem dormir, sem comer e picado pelos insetos, com o corpo todo dolorido da incômoda posição. O rio voltara a ser calmo e meu barco parecia um caiaque, deslizando célere pela lagoa encantada em que se transfomara o meu "Velho Chico".
Remei intensamente, cada vez mais motivado pela possibilidade de encerrar a expedição. Mas o céu se cobria de pesadas nuvens e a visão do rio era precária. Felizmente, não havia nenhuma outra embarcação com a qual eu pudesse me chocar inadvertidamente.  Éramos apena eu, quebrando a magia do lago e o silêncio do caminho, com minhas remadas compassadas e firmes...
De repente, começou a chover. Olhei para o céu e era todo nuvens, densas e carregadas. Tive receio de uma tempestade: vento e chuva seriam os ingredientes ideais de uma tragédia, pois ali, a mata era um só manto negro nas margens do rio...
Felizmente, a chuva cessou tão rápido quanto viera, e eu continuava remando com todas as forças. Pela manhã, ao nascer do sol, eu já estava em Penedo, uma cidade curiosa, protegida por uma espécie de enseada longa e curva, que me obrigara a atravessar para a margem direita, contornar o "istmo" e retornar à margem esquerda. A escuridão fazia tudo parecer misterioso... via imagens e as interpretava conforme meu sentimento, às vezes imaginando cenas inexistentes, outras valorizando detalhes insignificantes...
Havia algum movimento de barcos de pescadores e uma balsa, que levava carros, pessoas e mercadorias para o outro lado, onde também havia um povoado. Luzes coloridas, piscando intermitentemente, e música indicavam o final de uma festa, talvez a mesma que agitava Porto Real e Propriá...
Pensei em talvez encontrar algum bar ou quiosque ainda aberto, com  aqueles bebedores renitentes,  onde poderia encontrar comida... talvez até uma padaria, pois a fome estava me alertando sobre o vazio em meu estômago. Mas não havia nada! O som ecoava no vazio da noite e decidi parar o barco ao lado da balsa, sob um poste iluminado. Tomei dois goles de mel; era o que estava à mão naquele momento.
Um pescador se aproximou e "puxou conversa". Perguntou de onde eu vinha, de que era feito meu barco e coisas assim... e se eu achara os ventos fortes até então, é porque não conhecia o que haveria adiante! É que a proximidade do mar agora influenciava o rio e, na maré enchente, ele avançava por quilômetros, criando ondas mais fortes e mais altas, além do vento incessante.
Eram seis horas da manhã quando saí de Penedo. Já ventava um pouco e havia uma sucessão de ondas vindo em minha direção, mas eu progredia bem e não me importei com o esforço extra.
Às sete horas encontrei uma região belíssima - acho que o nome é Marituba" - com ilhas e margens cobertas de rica vegetação. Pela primeira vez desde Paulo Afonso eu voltava a ver e ouvir os pássaros! A água parou e as ondas desapareceram, como por encanto. Pois era assim que eu me sentia, encantado com aquele paraíso; reduzi a marcha e comecei a passear pelo rio, pura meditação em movimento... era como uma espiral, girando sobre si mesma, e escolhi o caminho mais longo para apreciar essa maravilha!
Alguns pescadores jogavam suas tarrafas e os peixes saltavam ao meu redor. Mas, aos poucos, percebi que boa parte daquele lugar já havia sido profanada! Nas ilhas, por detrás das matas, plantações de coqueiros; nas margens, depois da estreita vegetação, o gado tomava conta de tudo!
Sentia o cheiro de mata queimada e molhada pela chuva e, logo depois, uma grande extensão de terra desolada pelo fogo recente, os troncos enegrecidos e retorcidos, à margem do rio... o encanto se quebrou... ainda vi algumas belezas, como um trecho de areia branca, quase à superfície da água; depois uma enorme vegetação de algas submersas, balançando-se ao movimento do rio... e mais nada!
Voltei ao rio, normal e agitado pelos ventos. A chuva também voltou e temia não conseguir chegar a Piaçabuçu antes do vendaval. Já passava das nove horas e teria ainda cerca de 15 quilômetros pela frente, pelas marcações do GPS. O vento aumentou depressa e resolvi parar, pois estava exausto! Encostei sob umas árvores e fixei a canoa. Desci e limpei o lugar, pensando na possibilidade de pernoitar ali. Pelo menos não havia formigas, e tinha até uma minúscula praia para eu tomar um banho. Mas não tinha espaço para armar a barraca e teria que dormir no barco pela segunda noite consecutiva; isso me incomodava...
Aproveitei para colocar tudo em ordem: pendurei a toalha e a rede, tirei a água do barco, tomei banho e falei com minhas filhas, dizendo que poderia me atrasar bastante. Muitos barcos passavam por mim e confesso que tive muita vontade de "pegar carona" e chegar logo ao meu destino...
Segui adiante uma hora mais tarde, quando o vento diminuiu de intensidade. Estava perto de Brejo Grande, a última cidade de Sergipe antes da foz. Mas tive que parar novamente, pois voltou a ameaçar chuva e o vento aumentou bruscamente. Encontrei um abrigo e cobri a canoa com a lona do acampamento. Preparei um leite com chocolate e estava já decidido a ficar por ali mesmo.
Mas depois de algum tempo, perto do meio-dia, resolvi retomar a viagem. Lembrei-me das marés e pensei que, agora, na vazante, elas poderiam me ajudar, puxando o barco com a água do rio em direção ao mar. De fato, apesar do vento e de algumas ondas, o barco voltou a progredir e andar rápido. Era curiosa a ilusão óptica: remando contra as ondas, o rio parecia subir uma leve ladeira! Havia muitos aguapés nas margens.
Passei por um lugar apelidado de "Penedinho", uma espécie de clube de campo com várias casas, muitos barcos e até "jet-ski"! As propriedades colocaram cercas de arame farpado dentro do rio, impedindo os barcos de atracar! Um absurdo inaceitável! O rio é de todos, uma concessão de uso! No dia anterior eu tinha sido atacado por dois "hotweiller" em uma propriedade dessas, casa de luxo, talvez um marajá da era Collor... agora me mantinha distante da margem, por precaução...
Avistei Piaçabuçu às 13 horas. Bem antes de chegar à cidade, uma longa sucessão de barcos evidenciava uma vila de pescadores. O rio voltou a se agitar, mas agora, com essa visão de "fita de chegada" nada mais me seguraria! Remei intensamente, não me importando com as ondas que faziam a popa do barco se levantar e bater com força nas águas... até gostava desse barulho!
Cheguei a Piaçabuçu e observei o portal à frente, onde se descortinaria o mar... estava, finalmente, no final de minha jornada! Consegui vencer! Uma sensação indescritível!
Parei para me orientar e um pescador me informou que havia uma pousada logo à frente. Segui margeando a orla, que se contorcia à esquerda, alargando o rio antes de se lançar no oceano.
Muitos barquinhos coloridos estavam ancorados na baía, à frente de uma parede de contenção. Logo avistei a pousada e, finalmente, ancorei. Podia comemorar!
Estava completada a expedição que durou 99 dias de atividades intensas, três meses parado em Três Marias, cinco meses de planejamento, uma despesa enorme que consumiu todos os meus recursos e muito mais, e um ano inteiro dedicado ao rio que deveria ser tratado com dignidade, motivo de orgulho de todos os brasileiros.
No entanto, o sentimento que me resta é uma tristeza enorme pelo descaso do poder público em todas as suas esferas, a ignorância extrema de fazendeiros e pequenos agricultores, a falta de planejamento para a propalada revitalização, e o alarde eleitoreiro de uma grande obra que, ao invés de atender às carências dos ribeirinhos, levará as águas do Velho Chico para outras bacias do Nordeste, para as grandes cidades, para a agro-indústria, mas não para a população rural, de 12 milhões de pessoas, que continuarão dependendo dos carros-pipa para poder sobreviver!
A transposição não resolverá os problemas do semi-árido porque quem a projetou não sabe o que é o Sertão, como vive esse povo, do que ele, de fato, necessita para recuperar esse atraso tecnológico e cultural em que se encontra.
A sensação que eu tive ao visitar a maioria das comunidades, principalmente do oeste baiano, é de uma volta ao passado, cinquenta anos atrás, na época da minha infância. Casas de taipa, carros de boi, nenhuma oferta de cultura, economia de escambo ou predatória, pessoas sem perspectivas ou ambição, desemprego, intensos conflitos de terra, exploração da ignorância pelos apelos da fé e das promessas  de políticos corruptos, cidades que não tem receita para reverter esse quadro lastimável!
Com a falta de oportunidades e de emprego, os poucos filhos dessa terra que saem para estudar e conseguem uma formação superior abandonam seu lar ancestral e seguem para os grandes centros urbanos.
Centenas de minúsculas comunidades vivem nesse espaço sem perspectivas, e sua única ambição é um pouco de água, um pedaço de chão e condições de cultivar seus alimentos e cuidar da criação. Rezam para que a chuva chegue a tempo de molhar sua plantação para que possam alimentar sua prole que, não raro, se compõe de seis, oito, dez filhos, uma pequena criação de cabras, algumas galinhas, uns poucos porcos, uma ou duas vacas, todos criados soltos, partilhando de sua vida camponesa.
As "ONGs" que aqui atuam incendeiam esse cadinho de tensões sociais, que derrama sua lava nas lutas pela terra, sua ocupação e posse definitiva, conquistada, às vezes, sem eliminar os conflitos.
Algumas comunidades afirmam ser quilombolas ou indígenas para agilizar a pesada e ineficiente máquina federal, ainda que suas feições sejam as mesmas de todo o povo sertanejo, e quase todos tenham perdido a memória de seus antepassados, sua lingua ancestral, seus costumes, suas crenças, sua história, enfim.
A quem interessa essa pobreza imensa? Às igrejas de todos os cultos, que asseguram seus "rebanhos", aos políticos de todos os matizes, que a transforma em mote eleitoreiro na sucessão dos anos, aos movimentos sociais e às "ongs", que delas, as pessoas, fazem sua bandeira e sua luta. E, com isso, o semi-árido, verdadeira nação são-franciscana, se esfacela em um misto de fé inabalável e em sua única expectativa de redenção, depois desta vida...
E, com isso, o rio caminha para a sua própria morte, das águas, dos povos, dos animais e da vida em todas as suas manifestações naturais e selvagens. O que será desse povo quando o rio não for mais capaz de se sustentar e mergulhar na entropia irreversível da auto-destruição?
Talvez a culpa seja atribuída ao passado, mas é no presente  que agem, intensas, essa forças da destruição. E assim como os demais biomas nacionais, vamos dizimando a Natureza, consumindo as riquezas de nossa redenção.
Somos o país mais rico do mundo em bio-diversidades, em hidrologia, em miscigenação racial, em sincretismo religioso... mas não somos capazes de preservá-los e de utilizá-los como alavanca de um desenvolvimento verdadeiramente sustentável, sem demagogias ou mentiras.
Ainda assim, depois de transformar o meu Velho Chico em minha morada e paixão por tanto tempo, posso afirmar que esta foi a maior e mais intensa experiência de minha vida, em aprendizado, em transformações intelectuais, pessoais e definitivas.
Se saberei convertê-las em um produto cultural, se minhas palavras se coverterão em um livro, se esse livro influenciará pessoas e influirá em outros destinos, só o futuro me responderá.
Mesmo que nada mais aconteça, eu me transformei, perdi minhas poucas vaidades, fiz dessa expedição um processo peregrino e missionário, e influenciei meu futuro e meu destino. E posso afirmar que valeu a pena!
Faria tudo de novo?
Certamente, não! Porque assim como as águas que nascem da Canastra nunca são as mesmas, ainda que voltasse a cada uma dessas localidades por onde passei, e percorresse os mesmos caminhos, meus olhos já não seriam os mesmos e contemplariam tudo de modo diferente, mais amadurecido, talvez, menos extasiados, certamente, mas com outros sentimentos, diferentes até na perplexidade e no encantamento que só existem no primeiro encontro.
Sou, portanto, mais uma vítima desse rio, um apaixonado que vê a sua amada sendo estuprada pela ganância e pelos interesses mesquinhos e imediatistas que a levarão à morte inevitável e cruel...
Fiz a minha parte... e você?

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A chegada


Depois de 100 dias remando no leito do Rio São Francisco o canoísta João Carlos Figueiredo termina sua jornada fluvial e chega hoje finalmente no encontro com as águas do mar!
No momento o canoísta se encontra na cidade de Piçabuçu/SE e assim que tiver contato com a internet contará a todos como foi esse final da expedição!
Parabéns pelo sucesso na expedição!!!!!
Que bom que estará de volta trazendo essa riqueza de informações, registros e experiências de vida com você!

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A difícil saída de Cabrobó...


Sair de Cabrobó está sendo tão difícil quanto chegar até a cidade... se na entrada as dificuldades foram as corredeiras e as pedras, agora é o transporte que impede minha progressão... pensei em ir direto a Paulo Afonso para ganhar alguns dias e ter mais tempo para visitar essa importante cidade do rio São Francisco, pois meus prazos agora são rígidos e com quase nenhuma margem de segurança: minha passagem de volta para casa já está marcada, a partir de Aracaju, para o dia 15 de dezembro!


Pois ontem fiquei quatro horas de pé em um posto de gasolina, à beira da estrada, esperando encontrar algum veículo que pudesse transportar minha canoa, minhas tralhas e eu... mas foi em vão! Não passou um só veículo com destino a Paulo Afonso! Voltei para a pensão cansado e sem perspectivas de retorno... ao final do dia surgiu algo que parecia a solução de meus problemas: uma van me levaria hoje, às seis horas, para meu destino! Finalmente eu conseguiria dar prosseguimento à viagem e ainda ganhar uns dois dias em minha programação.


Hoje acordei cedo e preparei tudo antes do sol nascer; mas houve um novo adiamento, e o carro só passaria às 8:00 horas... paciência! Tomei café da manhã e coloquei toda a bagagem na varanda, exceto a canoa, que ficou no posto de gasolina. Oito horas... oito e trinha... nove horas... o tempo passava e nada da van chegar! Liguei para o Emilson e ele dise que eu não me preocupasse, pois o carro já estava abastecido e logo me pegaria na pensão.



Nove e trinta... dez horas... liguei para o Paulo Teógenes e pedi sua ajuda... ele prometeu falar com o Emilson... dez e trinta... onze horas... nada do carro. Resolvi vir para a lan house para diminuir minha ansiedade e aqui estou. Será que saio hoje? Teria sido melhor seguir pelo rio e enfrentar a barragem de Itaparica! O rio corre sozinho, já diziam os índios! Mesmo devagar, eu já estaria perto da barragem e logo chegaria a Petrolândia! Paciência... é disso que tenho vivido todos esses meses dedicados ao meu projeto, à Natureza e ao rio São Francisco... embora sem nenhum patrocínio, chegarei ao meu destino, que é o mar...

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

TRUKÁS: as tribos da Ilha Assunção

Segundo conta a história, os Trukás foram expulsos de suas terras há muitos anos, e transformados em escravos pelos colonizadores, com o apoio e colaboração da igreja católica. Em 1979, quase um século depois da aboliçãodos escravos, esse povo retomou a luta pelas suas terras, o que foi conseguido em 2002.

Hoje eles habitam a Ilha de Assunção e mais 72 ilhas em seu redor, e trabalham a terra com modernas técnicas de agricultura e pecuária e diversificada produção. São auto-suficientes, possuem várias escolas, onde as aulas são ministradas por professores Trukas, e ainda preservam algumas tradições, como a cerimônia do Toré.

Sua população é de mais de cinco mil indivíduos e as terras foram distribuídas igualmente entre seus moradores. Hoje a relação com a terra respeita a capacidade produtiva e a habilidade de gerar riqueza de seus moradores, como ocorre em todas as sociedades. Vivem em paz e em harmonia com a Natureza, que preservam com responsabilidade.

Fui apresentado à tribo dos Trukás pelo Ednaldo Ciliro, descendente de um dos responsáveis pela sua emancipação. Ednaldo é daquelas pessoas que não se pode deixar de conhecer: alegre, inteligente, completamente integrado em seu mundo e, mesmo assim, circula com espontaneidade no mundo "paralelo", descendente daqueles que, um dia, os humilharam e subjugaram. Mesmo assim, não guarda rancores e vive bem. Ele afirma que hoje não existe mais animosidade entre os habitantes de Cabrobó e as aldeias indígenas dos Trukas, nas ilhas do arquipélago de Assunção.

Ao final da minha visita ganhei dois livros editados pelos Trukas, relatando sua história, e com a dedicatória dos professores Trukás. Prometi voltar e me hospedar com eles quando meu livro tiver sido publicado. Ednaldo retribuiu dizendo que terei a honra de assistir a uma cerimônia Toré!

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Monte Carmelo: vista do rio sob o cruzeiro


Pôr do sol em Orocó


Árvore em bifurcação do rio, próxima a Cabrobó


Cabrobó - o berço da transposição

Ruínas de uma igreja construída em 1617. As pedras foram apenas encaixadas!

Minha chegada a Cabrobó não poderia ter sido mais complicada! Remei durante 8 horas, desde Orocó, contra um vento fote e muita "mareta"! É cansativo e improdutivo enfrentar o vento, mas não tinha alternativa; precisava chegar a Cabrobó, final da penúltima parte de minha expedição!

O trajeto é ponteado de ilhas, ilhotas, pedras e corredeiras, de muita beleza, mas exigindo atenção redobrada e muito cuidado para não bater nos inúmeros "stonebergs" do rio! Essas pedras imensas às vezes ficam totalmente submersas, muito próximas da superfície da água, prontas para virar qualquer embarcação que apenas resvale o casco em sua borda.


Perto de Orocó já havia passado por uma situação difícil: um trecho acidentado, com poucas alternativas, exigindo decisões rápidas, muito reflexo e, especialmente, SORTE! Entrei na corredeira com determinação e logo percebi que a encrenca era maior do que pensava!

De um lado, as pedras se avolumaram rentes ao casco de minha canoa; o ritmo rápido do rio não dava margens para indecisões; joguei o barco de lado e puxei de volta novamente, conseguindo evitar o impacto! De outro lado, as ondas se formavam perigosamente paralelas à embarcação: se elas chegassem dessa maneira, não haveria como manter o barco na água; com o remo fiz um pivô lateral, girando a canoa sobre seu eixo; consegui colocá-la de frente para as ondas, mas o impacto foi forte e muita água entrou de uma só vez.

Voltei a girar o barco e puxei o remo com força, seguidamente, antes que outra onda me atingisse; consegui, finalmente, sair da zona de formação de ondas e parti para a segunda bateria de corredeiras; tinha que mudar para a outra margem, onde pareciam estar os obstáculos mais fáceis. Remava intensamente, quase no limite de minhas forças, pois não poderia errar: o barco já tinha muita água e qualquer erro seria fatal.

Enfim, consegui superar esses obstáculos... parei em um trecho recoberto de aguapés e esvaziei a canoa lentamente. Bebi água, retomei o fôlego e segui adiante. Não imaginei que, depois de Monte Carmelo, houvesse outro trecho complicado assim.

Quando chegava a Cabrobó percebi que havia outro obstáculo, agora intransponível: o rio fazia uma curva em "S" em torno de uma enorme pedra, sobre a qual várias pessoas se divertiam. Mal tive tempo de jogar o barco sobre a margem, em um matagal. Saltei para o barranco e examinei, de longe, a corredeira: sem nenhuma possibilidade de êxito! Não dava para passar.


Com muito esforço remei de volta, rio acima, até uma bifurcação; girei o barco e me joguei "no escuro", fazendo uma curva fechada à esquerda; a canoa passou direto sob uma árvore muito baixa e me arranhei com seus espinhos, mas consegui passar. A alegria, porém, durou alguns segundos: à minha frente, outra árvore despencada sobre o rio, já morta!

Bati de frente e o bico da proa se alojou embaixo de um galho! A água entrava rapidamente no barco; não tive tempo de pensar: firmei o pé no tronco  e joguei meu corpo para trás, puxando o barco. Na terceira tentativa ele cedeu e saiu de baixo da árvore. Eu me virei e amarrei a popa em uma forquilha, imobilizando o casco. Tentei descolar o barco da árvore, mas cada movimento fazia a canoa girarde lado, entrando mais água. Estava preso!

Tirei a água lentamente, com uma esponja, pois a caneca que eu tinha deve ter caído na água. Com o barco estável, escalei o tronco e pulei para o barranco. Subi rapidamente e gritei por ajuda, mas ninguém respondeu. Temia que o barco virasse e eu perdesse todas as minhas anotações, fotografias, filmagens, tudo o que representava meu trabalho até então. Desisti...

Liguei para Paulo Teógenes, secretário de Finanças de Cabrobó que, prontamente, se dispôs a me ajudar. Pediu algums informações: eu estava a 1,84 km da cidade, pelo meu GPS, estava em um canal do rio (eles chamam de rio pequeno;o rio grande passa por fora da ilha de Assunção) e ouvia sons de animais (cães, galinhas e cabras). Era tudo o que eu soube informar. Alguns minutos depois ele chegava, com mais dois secretários de governo que, com a ajuda de dois índios Trukás, me ajudaram a transportar as sacolas que eu levava no barco para o barranco, em sucessivas escaladas da árvore caída. Aos poucos, tudo se resolvia...

Passei, por fim, a canoa, e seguimos para a cidade. Depois eles me disseram que, por aquele caminho, não seria possível eu chegar: havia outra corredeira, logo abaixo, igual ou pior do que aquela que eu avistara. Levaram-me para a pensão de dona Júlia, uma simpática velhinha, mãe de dona Socorro. Era uma pensão simples e agradável.


À noite jantamos juntos e conheci outros membros do governo municipal, inclusive o prefeito, Eudes Caldas. Comemos um bode assado (que, na verdade, era um carneiro), muito apreciado pelo presidente Lula, em sua visita a Cabrobó. Fui dormir cedo, pois estava cansado.

Paulo Teógenes tem sido um grande amigo, essencial para minha permanência bem sucedida nesta cidade: viabiliza tudo com a maior facilidade e está sempre disponível para me ajudar no que for preciso. Sem sua ajuda, minha passagem por Cabrobó talvez nem tivesse sido percebida pela população, como aconteceu em tantas outras cidades...


Cabrobóé uma cidade de 35 mil habitantes, muito agradável, com estilo de vida de cidade de praia, bares e cadeiras nas calçadas, todo mundo se conhecendo e se relacionando com simpatia e em paz. Essa imagem verdadeira é muito diferente daquela transmitida pela imprensa: há muito tempo Cabrobó não conhece a violência e se tornou uma cidade progressista e moderna, com bons restaurantes, padarias e um comércio ativo e forte.


Ontem foi um dia especial para mim: fui entrevistado em duas rádios: a Comunidade, rádio local, e a Grande Rio, que atinge cerca de 23 municípios,inclusive Petrolina. Depois fiz palestras em três escolas públicas.

Hoje visitei as obras da transposição: gigantesca e impressionante! Mais de 8 mil trabalhadores, uma imensidão de canais que levarão as águas para outras bacias, perenizando rios e prometendo melhorar as condições de vida dos sertanejos nordestinos... agora visitarei a comunidade de índios Trukás, na ilha de Assunção. Amanhã sigo para Paulo Afonso. Isso encerra essa etapa e estarei a 250 km da foz...

sábado, 21 de novembro de 2009

Santa Maria da Boa Vista




Monte Carmelo: formações de corredeiras
Cheguei a Santa Maria dia 20 de novembro, às 14:30 horas... uma praia que mais parece à beira-mar, com pessoas amáveis me perguntando de onde eu vinha com minha pequena canoa... já me senti bem à chegada, mas muito haveria de se contar dessa cidade hospitaleira!


Uma cidade para não se esquecer jamais!
Adelmir, assessor do Prefeito Leandro Duarte, foi me buscar na praia. Almocei um tucunaré feito "no capricho" e tomei água de côco... já me sentia na praia de Boa Viagem! Fomos para a Pousada Maruada e me refiz da curta e cansativa jornada desde Curaçá. Muito vento e marolas ("maretas") dificultaram minha progressão nos últimos três dias...

Ainda na praia fui recepcionado pelo Prefeito Leandro Duarte e muitos amigos, de forma carinhosa e generosa como apenas o povo nordestino sabe nos receber... lembrei-me dos idos de 1986 a 90, quando moramos em Recife, nas inúmeras amizades que lá deixamos, e nos anos inesquecíveis que marcaram para sempre nossas vidas...

Hoje visitamos um lugar chamado Monte Carmelo, uma parede rochosa que se projeta sobre o Velho Chico de forma imponente e bela. No alto, um cruzeiro e um pequeno santuário, onde se realizam romarias. A vista é impressionante! O rio tece suas curvas caprichosamente, envolvendo as escarpas, caudaloso e ramificado em dezenas de ilhas, ornamentadas com rica vegetação! No leito do rio, corredeiras e redemoinhos ("cachoeiras" e "panelas", como se diz por aqui) embelezam ainda mais a natureza selvagem desse rio magnífico!

Ao longo do caminho, pela estrada que corta a caatinga, diversos povoados sobrevivem à rudeza do clima, sem perder a alegria, manifestada em várias casas simples de espetáculos, muitos bares e um povo hospitaleiro e amável. Quem convive com eles se apaixona!

Amanhã seguirei minha jornada e enfrentarei essas corredeiras, em direção a Cabrobó, onde conhecerei a tribo dos Trukás e visitarei as obras da transposição, procurando entender seus motivos e expectativas de mitigar a sede de tantos habitantes que se espalham pelas caatingas e dependem do velho carro-pipa para poder sobreviver.

É a fase final de minha expedição, que me levará depois a Belém de São Francisco, Paulo Afonso e demais cidades da divisa de Alagoas e Sergipe, rumo ao mar e à minha casa!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Eu gosto de Juazeiro e adoro Petrolina!


Há cerca de 20 anos eu passava por Petrolina e Juazeiro, a caminho de Senhor do Bonfim e Campo Formoso, vindo de Recife, onde morava. Era uma viagem de trabalho e passei rapidamente por essas cidades, pois tínhamos pouco tempo para realizar um levantamento de informações em uma empresa de mineração e cimento, de Alexandre Maranhão. Eram cidades simples e pacatas, típicas do interior nordestino, e o que me chamou a atenção foi a ponte e o rio que as separava. Mal sabia que esse rio, o meu Velho Chico, se tornaria íntimo de minha vida e dono de meu destino! Isso foi há muitos anos...

Passei ao largo da represa de Sobradinho, desde Passagem e Pilão Arcado, direto para Petrolina. A travessia de Xique-Xique para Passagem foi feita de barco e cheguei à noite no pequeno porto; dormi no próprio barco devido ao adiantado da hora. Pela manhã conversei com alguns moradores e logo percebi que seria difícil conseguir transporte para Remanso. Ao contrário de Xique-Xique, Passagem tem muito pouco movimento de barcos e nenhum transporte regular para qualquer outra cidade do lago de Sobradinho.

Segui para Pilão Arcado em um pequeno caminhão e logo saí em busca de transporte. Também lá a situação era difícil; poucos veículos faziam entregas, a maioria carros frigoríficos, e nenhum se dispunha a levar minha canoa até Remanso. O preço de transporte em uma caminhonete era absurdo: cento e cinquenta reais! Desse jeito não chegaria ao final de minha viagem!

Depois de algumas horas sentado no meio-fio, minha canoa no meio da rua, passou uma carreta que eu vira despejando sacos de cimento logo atrás. Dei sinal, meio desconsolado, e o motorista, sr. Régis, parou. Expliquei a ele minhas dificuldades, mas ele se mostrava desconfiado e indeciso. "Quem seria esse maluco?", teria pensado. Tomei uma decisão e perguntei: "por quanto o sr. me leva até Patrolina?". Ele, pego de surpresa, replicou: "quanto o sr. me daria?". E logo fiz uma proposta definitiva: "cento e cinquenta reais"; foi o que me veio à cabeça, dado o preço das caminhonetes até Remanso... ele aceitou!

Chegamos a Petrolina às nove da noite, depois de passarmos por Remanso e Casa Nova. A estrada é péssima e a carreta vazia chacoalhava muito, fazendo um barulho metálico desagradável e  constante... minha canoa era jogada para todo canto da carroceria, perdida naquela imensidão vazia... No caminho ele ainda deu carona a três pessoas e logo percebi que paguei caro demais... mas o problema de transporte foi resolvido e era o que me interessava naquele momento. Paramos para almoçar em Remanso, onde tomei um banho e troquei de roupa. No caminho liguei para Avelar Amador, diretor do Clube Náutico de Petrolina, que me oferecera estadia e apoio logístico, através do chat de meu blog...

Avelar se encontrou comigo na cidade e descarregamos a canoa e minhas tralhas no clube. Seguimos à procura de um hotel e fiquei muito bem instalado no Portal do Rio, bem no centro da cidade. O hotel serve um excelente café da manhã e tem telefone, TV e ar condicionado no quarto. Muito mais do que estou acostumado nos últimos meses! Só estranhei mesmo a água quente... prefiro gelada!

Avelar tem sido um grande amigo: levou-me ao clube e me apresentou a seus amigos, fomos passear de veleiro com um amigo em comum de Recife, o Paulo Moura, ex-colega do Pague-Menos; hoje fomos ao museu de Ana das Carrancas, artista plástica falecida em 2008, e que produziu obras belíssimas em barro, e à Casa do Artesão, onde conheci "Rock" Santeiro, um artista que esculpe, em madeira, peças magníficas!

Ainda dei uma entrevista à Gazzeta de Petrolina, graças aos contatos de sábado no Clube Náutico. A reportagem deverá sair na edição de amanhã, dia que reservei para visitar Sobradinho, a cidade e a represa. Lá tenho outra indicação de Avelar, o engenheiro Marcelo, que me mostrará a usina hidrelétrica.

Na quarta-feira sigo minha viagem, agora recuperado de parte de meus atrasos... e levo comigo as recordações de um grande companheiro, Avelar Amador, que me deu todo esse apoio apenas por acreditar em meu trabalho e compartilhar de minhas intenções preservacionistas! Obrigado, meu amigo!

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Xique-Xique: 1.700 km percorridos!


Cheguei a Xique-Xique ontem, no iníco da noite. Foi bem complicado, pois parei em um lugar ermo, estranho e já escurecia... tentei meus contatos aqui e em Juazeiro, mas não conseguimos nenhum apoio. Resolvi retornar até um canal por onde passavam barcos  grandes e que eu vira na chegada. Dei sinal para alguns, mas ninguém parava; parecia até que não me viam! Segui adiante e vi luzes em um casarão que me pareceu um hotel.


Quado subia o barranco, duas pessoas me recomendaram a não parar ali, pois o risco de assalto era grande. Disseram-me que logo adiante haveria um porto com muitos barcos e eu poderia pedir auxílio. E foi isso que aconteceu: parei ao lado de um barco e pedi para pernoitar ali mesmo. Um senhor idoso e seus dois filhos me acolheram e me tranquilizei.


Conversando com esse velho pescador, ele contou uma lenda (no qual ele acredita!), dizendo que o Surubim, quando envelhece, se torna um monstro: crescem cabelos sob as guelras e pelo corpo todo, e ele se transforma em um ser perverso e comedor de gente! Contou até a história de um conhecido deles, que foi devorado por um surubim; quando conseguiram tirá-lo das garras desse animal, já era tarde...


Lendas à parte, o fato é que consegui ficar em segurança, embora não tenha dormido mais do que alguns minutos; chegou um grupo de pessoas no barco ao lado e conversaram durante horas. Quando paravam, chegou outro barco, parou ao lado, e desembarcaram umas dez pessoas, além de muita carga. Depois passaram todo o pescado para os tanques e cobriram de gelo. Quando fecharam as cortinas para dormir, eu já tinha perdido o sono. Para piorar, senti frio na magrugada...


Saí de Barra às oito da manhã, depois de uma despedida emocionante de irmã Irene, que me abençoou e me deu vários presentes, e de Dra. Maria Eloá, que também me presenteou com frutas e lembranças. Nunca me esquecerei dessa passagem por Barra do rio Grande, uma cidade histórica e repleta de histórias!


Lá conheci a professora Joana Camandaroba, uma senhora de 95 anos, muito lúcida e que começou sua carreira de escritora aos 80 anos! Já publicou quatro livros e prepara seu quinto volume. Tem uma memória privilegiada e me recebeu em sua casa para um chá e uma entrevista deliciosa! Ela possui um museu de peças raríssimas, que vai de uma coleção de pratarias e peças de todo o mundo, que amealhou em suas viagens, até o solidéu (pequeno boné sem aba) que ganhou do papa Pio XII, em Roma. Ela me deu um de seus livros, com uma extensa dedicatória! Depois ganhei outro livro dela, "O último canto do cisne" da sra. Helena, proprietária do Espaço Cultura, uma livraria interessante no centro da cidade.


Em Barra fiquei hospedado no Palácio Episcopal a convite de Frei Luiz Cappio, o Bispo da Diocese. Dom Cappio é uma personalidade carismática, calmo e sereno, discípulo de Leonardo Boff, o autor de Teoria da Libertação e membro da Igreja Progressista que surgiu na década de 60 e 70, durante e depois do Concílio Vaticano II. No Brasil ficaram conhecidos os bispos Dom Pedro Casaldaglia, de Félix do Araguaia, Dom Evaristo Arns, de São Paulo e Dom Hélder Câmara, de Olinda e Recife.


Frei Luiz, como carinhosamente o chamam as pessoas das comunidades pobres do Sâo Francisco, é um verdadeiro Franciscano, austero e humilde, como o Santo, engajado na luta pela defesa do rio e de sua população mais carente, e posuidor de uma fala brilhante e contundente, contrário à obra faraônica da transposição, e em defesa de um projeto de Revitalização, não só do Rio Sâo Francisco, mas de toda a população que dele depende para sobreviver. Isso inclui uma verdadeira Reforma Agrária e a revisão dos mega-projetos desenvolvimentistas que mais contribuem para a morte do rio.


Tive o privilégio de conviver alguns dias com todas essas pessoas e recebi um presente inesquecível de Frei Luiz: um depoimento gravado,  que em breve colocarei neste blog para deleite de todos vocês. Frei Luiz também foi generoso comigo: ligou para minha mãe e lhe deu sua bênção, repleta de palavras bondosas e amorosas para a pessoa a quem mais quero bem nessa vida!


Agora sigo meu caminho em direção à foz: quinta-feira chegarei em Pilão Arcado, onde pegarei nova carona para Remanso e Sento Sé, até chegar a Sobradinho, para transpor a barragem e chegar a Juazeiro e Petrolina. De lá só faltarão 700 km até o mar, e ainda terei uma portagem de 180 km para superar Paulo Afonso e Xingó. Estou no fim de minha jornada e me sinto muito bem com isso!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Barra: o encerramento de uma grande etapa!


Cheguei a Barra ontem, dia 02 de novembro, pleno finados!

Desde Paratinga, duas experiências muito importantes: as visitas aos quilombos de Boa Vista do Pixaim e de Torrinha! Pessoas muito especiais vivem nessas comunidades... pessoas oprimidas pelo nosso sistema social e econômico, extremamente elitista e excludente, que ignora o fundamento da vida humana: a sua dignidade!

Mesmo depois das ameaças sofridas decidi visitar essas comunidades, pois minha viagem só passou a ter sentido em função delas, que me enriquecem profundamente e me tornam um ser mais humano e solidário. Eles sim, são heróis, mártires vivos de uma opressão tremenda de nosso sistema político e social!

É difícil conceber uma população que vive há duzentos, trezentos anos em uma terra, descendentes diretos de escravos foragidos de seus algozes, e ainda assim, sendo ameaçados de expulsão pelos fazendeiros que os cercam e impedem que tenham uma vida digna. Muitos desses fazendeiros nem conhecem esses verdadeiros moradores; muitos mal sabem de suas próprias terras, herdadas pela ilegalidade de nosso poder estabelecido, griladas ou invadidas, até mesmo em áreas pertencentes à União, às margens do Velho Chico!

Mas a verdade se restabelecerá, um dia, e fará justiça a esses homens e mulheres, velhos e crianças esquecidos neste mundo imenso dos sertões Bahianos, e receberão suas terras, e cultivarão seus próprios alimentso, assim como aprenderam de seus antepassados, em lameiros, sem agrotóxicos, naturalmente...

Em Boa Vsita do Pixaim fui recebido por Alex e sua família, e hospedado como se um parente fosse, com toda a atenção e carinho de um velho amigo, que assim já me sinto. Falei para a comunidade, relatei meus pensamentos, convidei-os a refletir sobre a devastação que se abate sobre o rio São Francisco, a defender seu legado e lutar para que seus filhos - nossos filhos - tenham um mundo do qual se orgulhem!

Ainda há muito para se fazer nessas terras: drenar os baixios que se alagam a cada chuva, cultivar o milho a abóbora, a mandioca, o tomate, a melancia... cuidar da criação de porcos, galinhas e cabras, investir na reconstrução de suas casas de taipa, trazer a cultura para seus lares, enfim, inclui-los no mundo atual!

Saí de Boa Vista do Pixaim fortalecido pelo convívio e pela solidariedade recebida e prestada a eles, com minhas energias recuperadas e determinado a seguir até o final de minha jornada.

Passei por Torrinha por acaso... estava na outra margem do rio quando avistei uma enorme montanha de rochas e, em seu pé, ruínas de construções antigas, que me chamaram a atenção e me levaram a atravessar o rio e saber o que era aquilo. Era Torrinha, uma comunidade quilombola com cerca de 70 famílias, em um local magnífico, de grandes possibilidades turísticas e potencial de desenvolvimento econômico rápido.

Na margem, Juarez, o líder da comunidade me esperava há três dias! Fiquei impressionado! Almoçamos juntos e já partimos para uma visita inusitada: passamos pelas ruas da comunidade e pude fotografar as pessoas, as construções, os arruamentos... nada ficou esquecido! Juarez até me indicava os melhores ângulos, as melhores fotos; pedia aos moradores para colaborar... enfim, fiz o que precisava.

Descemos à margem do rio, onde duas enormes mangueiras centenárias abrigavam a maioria dos moradores. Fiz uma palestra emocionado e impelido pela vontade de falar a todos sobre o projeto, as agressões à natureza, os descaminhos do homem nas terras de Deus! Falei por mais de uma hora, a tarde avançando em meu relógio, mas nem sentia necessidade de prosseguir viagem.

Enfim, às 5 horas, saí, abraçado ao povo, compartilhando as mesmas emoções, irmanados pelo mesmo sentimento de união e de revolta pelas injustiças que se abatem sobre esse povo indefeso.

Naveguei por mais umas duas horas e acampei em uma bela praia. Foi uma noite inesquecível, de lembranças recentes e de intensas ambições futuras. Preciso realizar meu projeto e denunciar esses abusos!

Amanhã conhecerei Frei Luiz Cappio e será uma nova e intensa emoção em meu percurso...

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Paratinga, Bahia

UM POUCO DE HISTÓRIA
Paratinga é um município brasileiro do estado da Bahia.

Era a maior cidade de sua micro região; suas terras se estendiam por onde hoje é Bom Jesus da Lapa, Ibotirama, Macaúbas, dentre outras 17 cidades do oeste baiano que já fizeram parte de sua composição. Cidade de história e cultura muito rica, até hoje preservam-se casas com características barrocas. Sua população em 2004 era de 29.474 habitantes, estimada hoje em 30.230. A caatinga é a vegetação predominante. Paratinga tem pontos turísticos lindíssimos, como por exemplo, as Águas Termais do Paulista e do Brejo da Moças, com piscinas naturais de água termo-mineral, além da Gruta da Lapinha, com desenhos rupestres ainda conservados, com potencial turístico a ser explorado. Possui a maior ilha fluvial do Rio São Francisco, denominada de Ilha de Paratinga. O município é banhado pelo Velho Chico e em toda sua extensão possui belas praias e recantos ribeirinhos com um grande potencial para a prática da pesca esportiva, o que tem atraido muitos visitantes até de outros Estados da Federação.

História

Em 1.746, uma fazenda de gado denominada Santo Antônio do Urubu de Cima foi promovida à categoria de Vila. Em 2 de maio de 1835 foi criada a Comarca do Urubu com objetivo de levar o poder do governo imperial à região. Em 25 de junho de 1897 é elevada à categoria de cidade, com o nome de Cidade do Urubu. Em 29 de maio de 1943 o nome do município é alterado para Rio Branco. Em 31 de dezembro de 1943 o nome da cidade sofre nova alteração passando a se chamar Paratinga, rio branco na língua tupi-guarani.

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Histórias à parte, cheguei a Paratinga no dia 26 de outubro, uma segunda-feira, e já me surpreendi com o grande banco de areias que assoreia a entrada da cidade. Esse problema é uma constante em todo o médio São Francisco, mas sempre nos incomoda, pela gravidade da situação.

Paratinga tem uma bela igreja, ornamentada por santos barrocos e um adro de madeira com pintura do final do século XIX. A igreja está bem conservada e preserva púlpitos de madeira trabalhados em ouro, altares ornamentados com imagens religiosas de elevado valor artístico e portas de madeira maciça originais. Vale a pena conhecer!

A hospitalidade desse povo bahiano é uma constante em todas as cidades que visitamos. Comida caseira, sempre com o tradicional arroz, feijão, abóbora e farinha de mandioca, e uma pimentinha que os bahianos nos alertam: `cuidado com ela`!

Já passei dos 1350 km percorridos e sigo adiante em direção ao submédio... minha experiência pelo meu Velho Chico é cada dia mais excitante, seja pela atenção que recebo das pessoas, seja pela beleza das paisagens.

Mas o que me impressiona realmente é a cultura do povo ribeirinho! É preciso conservar esses aspectos tradicionais do povo brasileiro, que as novelas apagaram, ou transformaram em folclore, mas que permanecem vivos nas pessoas simples do interior. É uma viagem pelo tempo, reminiscências de minha infância no interior paulista, na cidade de Dracena, quando essas mesmas paisagens ainda faziam parte de meu cotidiano.

Os grandes centros urbanos apagaram definitivamente essas memórias, mas aqui elas permanecem vivas e fecundas, como a verdadeira alma brasileira!

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Bom Jesus da Lapa, Comissão Pastoral da Terra

Pronunciamento no encontro da CPT, dia 22 de outubro de 2009
Sob a estátua de Francisco, nosso mestre, nosso irmão, um pequeno olho d´água, rebento da terra, recém nascido, busca a luz do sol e começa sua jornada nesse mundo de Deus. Mal sabe aquele filete de água, o seu destino; e, como criança, serpenteia pelos vales das colinas da Canastra, juntando a suas águas as de outros regatos pequeninos como ele. Caminha assim, nos altiplanos do cerrado, até formar volume e criar coragem para lançar-se à aventura de saltar da montanha e descer as encostas dos morros, em direção ao mar. É a Casca Danta, uma das belas cachoeiras que ornamentam nosso país, com seus quase 200 metros de queda pelas rochas, até formar um lago de águas escuras e geladas.

Segui seu curso, caminhando na montanha; desci ao seu lado pelas rochas, e me coloquei em suas águas para descermos juntos daí em diante, unindo meu destino ao seu, entre corredeiras e remansos, cercados de mata virgem e animais silvestres, como gostava o Santo de estar. Suas águas cristalinas correm sobre um leito de pedras arredondadas, seixos roliços de tanto rolar pelos séculos, desde a montanha. Novos riachos depositam suas águas em cascatas prateadas, trazendo consigo a vida de outras matas, peixes, pássaros de toda espécie, num abençoado Jardim do Éden...

Por mais de dez dias, eu, chiquinho (como o chamam os ribeirinhos) e os animais convivemos nessa terra prometida que os homens, aos poucos, vão devastando, plantando milho onde só havia floresta, criando gado, poluindo suas águas com seus esgotos e agrotóxicos, até que aquela pureza não exista mais.

Quando chega o Samburá, o Sâo Francisco já é quase adulto, mais calmo, águas lamacentas e turvas, quase largo o bastante para não se deixar atravessar às braçadas de um nadador. Se antes as canoas dos pescadores não ousavam descer a montanha, agora surgem às dezenas, plantando caniços nas margens, arrastando redes que cercam os peixes, raspando o fundo do rio, sem chance de sobrevivência para muitos animais.

A algazarra dos pássaros diminui nas margens desnudadas de sua roupagem verde. E a avassaladora força das águas nas cheias leva os barrancos para o meio do rio, arrancando árvores, alargando as margens e tornando raso o leito do rio. Cada vez mais lavouras de monocultura de soja e cana de açúcar, e pastos de brachiaria empobrecem a paisagem, e inundam o rio com produtos químicos, matando seus peixes, que um dia foram grandes e tantos que não faltavam nas mesas dos homens.

Setenta léguas depois, o rio pára, contido pela barragem das Três Marias! Um muro gigantesco contém seu ímpeto e o aprisiona no grande lago azul que se formou a montante. É uma falsa pureza esse azul... todo o barro que corria junto às águas, agora se assenta no leito da represa, e os peixes de correnteza já não podem mais caçar. Em suas margens, a escassa vegetação já não abriga a vida. Apenas ranchos e clubes de pesca dos homens, que para ali se dirigem apenas para se divertir.

E, ao lado da barragem, o símbolo da ambição desmesurada dos homens se instalou, trazendo consigo a morte. Uma indústria de metais, que nas margens desse rio bendito deposita seus dejetos, produtos químicos e metais pesados, que nas cheias maiores escorrem para as águas, dizimando peixes aos milhares, e contaminando seu leito.

Depois disso, é muita tristeza, trazida pelas mãos dos homens; além dos resíduos industriais, esgotos urbanos e agrotóxicos! Um rio inteiro de esgotos da capital mineira é despejado no rio, depois de Pirapora: o rio das Velhas! Melhor seria chamá-lo o rio das Mortes!

Às vezes o rio é tão raso que quase dá para atravessá-lo a pé, caminhando... e, no entanto, muito de sua beleza resiste e permanece: os mais belos crepúsculos e ocasos, o sol tingindo o céu com todos os matizes de cores, um espetáculo emocionante!

Mas as queimadas e a motoserra não nos deixam esquecer a perversidade do homem, movido pela ganância de roubar do rio sua roupagem de vida. Para que? eu me pergunto... se aquilo que dele roubou para aumentar sua palntação o rio irá tomar de volta nas enchentes? Porém, o rio se alarga ainda mais, e agoniza lentamente, levando, nesse lamento, a vida que abrigava em seu manto sagrado...

É preciso fazer alguma coisa! O rio não pode morrer! Pois ele acolhe  também um povo simples, honesto, generoso, o verdadeiro ribeirinho, que há séculos se instalou em suas margens e ali criou sua história de lutas e sofrimento, mas também de respeito pacífico pelo rio Sâo Francisco...

É desse povo, quilombolas, indígenas, pescadores, pequenos agricultores, que sairá o grito de redenção:


Salvem o rio São Francisco!
Salve o nosso Velho Chico!

São Francisco Vivo: Terra, Água, Rio e Povo!

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Degradação ambiental


Áreas totalmente degradadas se sucedem ao longo do rio São Francisco, em decorrência da destruição das matas ciliares. Os barrancos desprotegidos desabam no período das chuvas e as áreas roubadas da Natureza são restituídas ao rio. O que parece uma esperteza dos ribeirinhos, torna-se uma estupidez porque, além de perderem a beleza e a proteção das matas e de seus habitantes (os animais), perdem também suas terras, que irão contribuir para o assoreamento do rio. Mais largo, o rio sofre pelo aquecimento das águas e a consequente evaporação. Diminuindo o volume de suas águas, reduz também o estoque de peixes, em uma corrente perversa de acontecimentos que a todos pune pelo mal de poucos.

O rio morre lentamente...

Homenagem ao líder do 17 de abril


Família de Afonso, lider assassinado do acampamento "17 de abril", instalado há quase seis anos na fazenda Bonanza. Homenagem ao companheiro, vítima da luta pela posse da terra e da reforma agrária, que se arrasta no Brasil há mais de um século, pelo descaso das autoridades e pela truculência dos latifundiários, que se recusam a conceder um pequeno pedaço de seu imenso patrimônio para abrigar uma centena de famílias sem terras.

Vista interna do Santuário de Bom Jesus da Lapa



Essa obra impressionante foi erigida no interior de uma caverna situada em uma formação cárstica única na localidade de Bom Jesus da Lapa. Anualmente recebe a visita de centenas de milhares de fiéis, que chegam em busca de um local para orações, preces e graças.

O Santuário de Bom Jesus da Lapa fica no município de Bom Jesus da Lapa no estado da Bahia, distante 796 quilômetros de Salvador. O santuário foi eleito a primeira das sete maravilhas do Brasil numa pesquisa feita pelo sítio da internet 7 Maravilhas Brasil. Descoberto em 1691, a Gruta do Bom Jesus, a mais conhecida do Morro de Bom Jesus da Lapa e antiga morada de onças, serve como Igreja do Bom Jesus da Lapa. O Santuário funciona numa gruta de pedra descoberta a mais de 350 anos pelo português Francisco Mendonsa Mar que era pintor e artista plástico, contratado pelo governador geral do Brasil na Bahia para pintar o Palácio da Aclamação, então sede do governo, após os trabalhos invés de receber pelo trabalho, foi jogado na prisão com seu escravo e açoitado. Quando solto, decidiu deixar a cidade do Salvador e levou consigo as imagens de Jesus crucificado e Nossa Senhora da Soledade. Após andar muitos meses, encontrou o Morro de Bom Jesus da Lapa, que possui 90 metros de altura. Dentre as nove grutas existentes no morro, abrigou-se na Gruta do Bom Jesus, onde colocou as duas imagens.
No período dos garimpos de ouro em Minas Gerais, os garimpeiros passavam perto da gruta e viam a luminosidade das velas que ele acendia, e assim foi se formando as romarias.
Hoje, trezentos anos depois, o santuário ainda atrai muitos romeiros, sendo um dos santuários mais conhecidos do Brasil. O zelo pastoral do santuário está entregue aos padres da Congregação do Santíssimo Redentor (CssR), popularmente conhecidos como Redentoristas. 

Fonte: Wikipédia

Comunidade quilombola de Barra do Parateca


Igreja Evangélica Nazareno Pentecostal
Moradores do quilombo que me prestigiaram na palestra sobre Preservação Ambiental e Revitalização do rio São Francisco 

Bom Jesus da Lapa - uma grata surpresa!


Quem chega a Bom Jesus da Lapa logo se depara com uma grande rocha arredondada isolada da paisagem, quase toda plana e baixa. Trata-se de uma rocha calcárea cárstica onde se localiza o mais famoso Santuário católico do Brasil.
Cheguei às 11:30 horas. Passei sob a grande ponte que atravessa o Sâo Francisco e aportei em um local onde ancoram os barcos de passageiros e fica a uns 2 km do centro da cidade. Foram me receber o Juliano, da Pastoral da Terra, e Walder, secretário de Agricultura. O problema é que os veículos não chegam até o cais, pois existe um braço de rio isolando a estrada.Tivemos que levar canoa e tralhas em uma carroça.
Ontem visitei um acampamento do CETA - Central Estadual de Trabalhadores Assentados e Acampados: o 17 de Abril. Era uma data especial, segundo aniversário do assassinato de seu líder, Afonso, muito admirado e respeitado pela comunidade, que luta há quase seis anos pela posse das terras ocupadas, na fazenda Bonanza. Almoçamos com os trabalhadores e compartilhamos um pouco de sua história sofrida em defesa do direito à posse de uma pequena área de terra para sua sobrevivência digna e honesta.
A visita ao Santuário impressiona, não somente pela magnitude da obra realizada dentro da caverna, mas também pela devoção das pessoas pobres, que vêem na oração o caminho para superar seu sofrimento e alcançar a "graça" pedida ao Deus de seus corações.
Desde ontem tenho a companhia de minha querida filha Mônica, que veio a Bom Jesus especialmente para me visitar! Depois de tanto tempo no rio é uma alegria imensa encontrar alguém a quem tanto amamos e compartilhar nossas experiências e contar nossas aventuras!

Antes de Bom Jesus estive na comunidade quilombola de Barra do Parateca, onde conheci o Pastor Almir, o líder Elson e me hospedei na casa de dona Maria, a Parteira que já realizou mais de 170 nascimentos na comunidade. Foi uma visita emocionante, onde falei para mais de 50 pessoas no templo evangélico Nazareno Pentecostal, uma audiência atenta e generosa, que me trouxe grande conforto espiritual nessa viagem de extremos esforços físico e psicológico. Agraeço a todos que me acolhem com tanto carinho e compreensão.

sábado, 10 de outubro de 2009

Canoista já percorreu 1.200 km e chega à Bahia


Chegando hoje a Malhada/BA, João Carlos Figueiredo encontra carinhosa recepção de moradores, apoiados por Jojô, professora e líder comunitária, membro atuante da Comissão Pastoral da Terra e comprometida com a causa da revitalização do rio São Francisco.
Há cerca de 20 dias retomei minha jornada. Ao todo, excluindo-se o período de interrupção, foram 41 dias de viagem pelo rio São Francisco, cerca de 1.200 km percorridos e 1.100 km remados. Os livros nos dão a ilusão do conhecimento. Através deles, parece-nos que tudo se resume a datas, nomes, números e eventos isolados.


A realidade, porém, é outra. Há um interrelacionamento dos fatos, dos ambientes, das pessoas, que a literatura não consegue captar. Tudo faz parte de um mesmo universo, ainda que barreiras e rupturas não permitam nosso pleno entendimento dessa integração. A sistematização do conhecimento tem seu papel didático e de organização do saber para que nossas mentes limitadas consigam captar e compreender esse mundo.


Mas esse processo de síntese não pode reduzir tudo a fragmentos que venham a mascarar a verdade, ocultando informações relevantes e imprescindíveis ao entendimento. Falo do São Francisco. Existem descontinuidades naturais, como é o caso da passagem do rio pela Serra da Canastra e a ruptura provocada pela cachoeira Casca Danta. Repentinamente, o rio cai de forma brusca e passa a correr pelos vales, alternando curvas, remansos e corredeiras, até encontrar seu plano natural, depois de cerca de 100 km, a partir do qual terá uma declividade de 4cm/km.


Existem, também, as intervenções humanas, violentas como as barragens que represam milhões de tonelada de água, mudando as feições do rio e afetando profundamente sua hidrografia e vida interior. E existe, ainda, a presença humana, dependente do rio, segregada em comunidades ou esparsa ao longo de suas margens, ora vivendo inocentemente, ora transgredindo as leis da preservação da Natureza, ameaçando a vida.


Já passei por muitas regiões e pude constatar a maioria dos problemas descritos na literatura, debatidos publicamente, exibidos em documentários. Mas nada é mais cruel do que a própria realidade, e só quem percorre o rio lentamente como eu pode compreender a sua verdadeira dimensão. O rio São Francisco é um gigante. Ninguém poderia conceber a morte desse colosso, por maiores que sejam os maltratos a que ele está submetido.


No entanto, ainda estou na área de formação desse rio, recebendo os últimos tributários perenes que agigantam suas águas. E, no meio de seu curso, onde deveria ter a força da juventude, imensas áreas de assoreamento chegam quase à superfície pela metade de sua largura. De onde vem tanta areia? Algumas até se transformaram em ilhas, outras não...


É desse processo contínuo que eu falo. O homem destrói as matas; as águas fazem o resto, arrancando as terras dos barrancos e arrastando-as ao longo do rio. Essas se transformam em areia e se depositam no fundo, tornando o rio mais raso e mais largo. As águas, por consequência, se aquecem e evaporam com mais intensidade. Os peixes de águas profundas desaparecem...


A poluição provocada por esgotos urbanos, resíduos industriais e agrotóxicos fazem o resto, matando os peixes, que são cada vez menores, seja pela pesca predatória, seja pelas dificuldades crescentes para se reproduzir. Pode um rio gigante como o Velho Chico morrer? Talvez secar por completo seja difícil e leve anos demais para a efêmera existência humana.
Mas existem outras formas de se morrer. Perder a vitalidade, tornar-se imprestável para o consumo humano, deixar de abrigar a rica fauna que ainda subsiste em suas margens... formas talvez mais cruéis...


Pois o rio São Francisco está morrendo!


As matas descontínuas já não abrigam as grandes espécies de felinos, símios e tantos outros animais, como jacarés, raposas e pássaros que deixaram de fazer parte da diversidade biológica de suas margens. As matas de fachada, tristes cenários que ocultam a perversidade do pequeno e do grande produtor rural, apenas evidencia o descaso dos governos que não fazem cumprir as leis e não punem com rigor esses criminosos.


Ainda não senti o peso do semi-árido, das baixas pluviosidades das caatingas, e já percebo essas situações extremas. E o poder público, o que faz? Contra grandes problemas, pequenas soluções que se arrastam com a má vontade e a ignorância de quem não conhece a realidade do rio. Minha percepção é limitada ao curso do rio, às poucas comunidades que visitei, aos raros depoimentos que colhi. E, no entanto, já posso afirmar a extrema gravidade do quadro que encontrei.


O Progresso é inexorável, dizem os desenvolvimentistas, para quem tudo é permitido em nome da nova economia e do enriquecimento das elites. Mas seria essa a única via para o futuro da humanidade? Consumir todos os recursos naturais até exaurir o planeta, inviabilizando a vida na Terra?


Existem outros caminhos, que passam por um conceito mais sólido de responsabilidade social, compromisso com o meio ambiente e com a eliminação das desigualdades sociais.
Dizem que não existem castas em nosso país... seria verdade? E como explicar o inevitável destino reservado às populações menos favorecidas e mesmo na miséria absoluta???


A eles, casta inferior e desprezada, só resta se conformar com o futuro, acreditar na vida eterna e convencer seus filhos a não se rebelar contra as injustiças, o abuso do poder e a extrema arrogância de suas elites...

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