sexta-feira, 31 de julho de 2009

Proteção dos Barrancos


Entre Vargem Bonita, onde comecei minha viagem, e a entrada da represa de Três Marias, onde ela foi interrompida, um dos fenômenos mais significativos e lamentáveis que constatei foi a quantidade de árvores arrastadas pela correnteza na época das cheias, e os barrancos desabados, levando o solo fértil rio abaixo, e provocando o assoreamento do rio, pelo caminho, e do lago de Três Marias.
Como minimizar esse problema, já que não há solução definitiva para ele? Uma das razões da destruição dos barrancos e das árvores é o desmatamento, a destruição das matas ciliares. O limite legal, de 50 metros das margens do rio, não é respeitado, nem é realista, uma vez que, nas cheias, o rio se estende por áreas muito maiores!
Além disso, as pastagens que substituiram as matas se estendem até a margem do rio; o pisoteamento do solo pelo gado transforma as praias naturais em barreiros e lamaçais perigosos até mesmo para o gado que lá bebe água.

Eu presenciei uma situação lastimável: uma vaca holandesa rastreada, atolada à beira do rio, já sem forças para se safar da lama, e que não consegui salvar.
Mas grande parte dos barrancos desaba mesmo sem a intervenção predatória do homem, pela força e volume das águas nas cheias do rio. Presenciei milhares de árvores caídas ao longo do rio, algumas obstruindo quase completamente o leito, dificultando a navegação.
Além disso, as pilastras das pontes ficam cercadas de enorme quantidade de galhos e de lama, reduzindo a área de vazão do rio.
Todos esses problemas podem ser mitigados pela recuperação da mata ciliar e da cobertura vegetal dos barrancos com espécies de gramíneas resistentes à ação das águas. Os limites das matas ciliares precisam ser reavaliados, não se restringindo rigorosamente a números, mas à sua função protetora dos barrancos e da foz dos afluentes.
Também o tipo de ocupação do solo pela ação do homem precisa ser repensado em função dos impactos ambientais que causa. Permitir que o gado invada os rios para beber água, além de ferir os critérios legais, também é uma irresponsabilidade, não apenas pelas fezes que são jogadas no rio, mas principalmente pela produção de lama e enfraquecimento das margens, que acabam levadas pelas águas.
Mais uma vez, a conscientização da população ribeirinha e, em especial, dos agricultores e pecuaristas, será decisiva para perenizar ações efetivas de revitalização da bacia do São Francisco.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Propostas para a revitalização do São Francisco

Sustentabilidade é a "palavra da moda" entre executivos e políticos; até mesmo entre ambientalistas que se confortam com a "destruição controlada!". No entanto, quase todas as reservas naturais estão ameaçadas pela expansão das fronteiras agrícolas e extrativistas. A soja, a cana de açúcar, a pecuária e a mineração são os inimigos viscerais do meio ambiente! Portanto, antes de se estabelecer "economias sustentáveis" em áreas de preservação ambiental, deveria ser feito um inventário dos recursos naturais ameaçados!

Penso em quais providências deveriam ser tomadas para a revitalização do São Francisco. Embora não seja um especialista no assunto, tenho minhas próprias concepções. Não é difícil imaginar alternativas quando se compreende o problema e se está comprometido com a Natureza.

A primeira ação que me ocorre é realizar um inventário atualizado e extensivo dos recursos hídricos e dos remanescentes de matas ciliares do Alto São Francisco, bem como o uso atual do solo, registrando a incidência de contaminação por esgotos domésticos, resíduos industriais e agrotóxicos.

Tendo uma visão correta das reservas hídricas e das fontes poluidoras, o próximo passo seria proteger essas áreas remanescentes através da extensão dos limites do “PARNA Serra da Canastra” até a confluência com o rio Samburá, incluindo sua nascente. Poderia ser denominado “Parque Nacional Nascentes do São Francisco”.

Com base nos levantamentos aerofotogramétricos, deveria ser desenvolvido um sistema geo-referenciado para monitorar, através de sensoriamento remoto e integrações cadastrais, a preservação das áreas protegidas. Esse modelo poderia até ser adotado para todos os parques nacionais.

Minha visão sobre parques nacionais inclui o entendimento das bacias hidrográficas como áreas de preservação integrais, e não segmentadas, como ocorre hoje. Assim, proponho a criação de uma Área de Preservação Ambiental que contemple toda a bacia do São Francisco, seus principais afluentes, suas matas e sua fauna. É importante compreender que o que sustenta os ecossistemas são seus recursos hídricos e não o contrário. As matas só existem devido às águas que possui em seus domínios...

Para assegurar a recuperação das áreas degradadas deveriam ser criados incentivos fiscais de compensação tributária para os proprietários (agricultores, pecuaristas, industriais) que investissem seus próprios recursos na recuperação, preservação e manutenção das reservas naturais: águas, terras, matas, cavernas e animais silvestres.

É de fundamental importância assegurar que a população tenha consciência de seu papel e responsabilidade na preservação do meio ambiente. Para isso, deveriam ser desenvolvidos programas de educação ambiental vinculados à realidade regional, em todos os segmentos sociais, nas escolas públicas e privadas, associações comunitárias e órgãos da administração municipal.

Aos infratores a Justiça deve estar preparada com os instrumentos adequados à imposição de penalidades, desde multas expressivas e convincentes até punições mais rigorosas, que coibissem os abusos e a degradação, o que se faria através da revisão do Código Penal nos artigos que tratam de crimes ambientais, tornando mais rígidas e severas as penas impostas aos que causem, intencionalmente, danos ao meio ambiente nas áreas protegidas.

Em contraposição, àqueles que contribuem para a conservação da Natureza, pessoas físicas ou empresas, entidades não governamentais e associações comunitárias, deveriam ser instituídos prêmios de incentivo e benefícios fiscais.

Também deveriam se tornar criminalmente imputáveis as ações políticas que favoreçam o descumprimento e o desrespeito às leis ambientais nas áreas de preservação. Sabemos que o tráfico de influência funciona de forma deletéria, principalmente em organismos responsáveis pela fiscalização e pela liberação de atividades nas áreas de preservação. Atenção especial às madeireiras e mineradoras, aos pecuaristas e agricultores latifundiários, cuja ambição e ganância não tem limites.

Por fim, é necessário e urgente estimular a criação de RPPN´s – Reservas Privadas de Preservação Ambiental, através de compensações fiscais e outros mecanismos legais, de modo a comprometer empresas e grandes propriedades rurais com os esforços de recuperação e preservação da bacia do São Francisco.

Em resumo, as ações que julgamos essenciais para a revitalização do Velho Chico:

-Proteção dos barrancos para reduzir os impactos das cheias e o assoreamento

-Criação de escadas para piracema nas represas

-Criação de viveiros de mudas para recuperação das matas ciliares

-Criaçao de viveiros de pássaros e peixes para repovoamento dos rios e lagoas

-Proteção das espécies ameaçadas de extinção

-Tratamento dos esgotos urbanos, agrícolas e industriais antes de serem lançados ao rio

-Campanhas permanentes de conscientização ecológica das populações ribeirinhas

-Criação do Parque Nacional Nascentes do São Francisco (extensão do PARNA Canastra)

-Proteção das lagoas de reprodução de animais silvestres nas margens do São Francisco

-Prêmios de incentivo à preservação ambiental para empresas e agro-indústria

-Punição mais rigorosa de crimes ambientais

-Criação de novas APA (Áreas de Preservação Ambiental) e RPPN (Reservas Particulares do -Patrimônio Natural)

-Redução e controle do uso de agrotóxicos nas lavouras

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Lições da Natureza

Quando olhei o rio pela primeira vez pareceu-me estranho e arredio, como se não quizesse minha presença ali. Eu compreendi suas razões, pois aquele não era o meu mundo. Estava ali de passagem, como tantos outros... uns poucos o trataram com respeito e admiração, mas a maioria só estivera ali para levar seus filhos, os peixes, as capivaras, as matas... e nada deixaram em troca!

Aceitei a recusa do rio com humildade e respeito e, a cada novo dia, ele me parecia mais tolerante, compreensivo. Seus filhos já me reconheciam e aceitavam a minha presença; suas águas contavam-me seus segredos; e, aos poucos, fui aprendendo sua linguagem e compreendendo seus mistérios.
Olhava as águas e elas me diziam se havia troncos submersos, se redemoinhos se formavam em seu leito, se uma nova corredeira estava por surgir à minha frente... os pássaros também me falavam sobre seus ninhos, que eles protegiam com determinação; mostravam-me o melhor caminho em uma corredeira; afastavam-me dos perigos.
Assim, fui me afeiçoando ao rio e à sua gente... ao entardecer, quando me preparava para o pernoite, olhava ao meu redor e sabia que não havia perigo em estar ali, cercado de personagens fantásticos em seus mundos individuais. Montava a minha barraca, apreciava os últimos raios de sol, ouvia as melodias de seus animais ocultos pela mata... e adormecia feliz...
Todas as manhãs os pássaros me despertavam antes mesmo do primeiro raio de sol. Ficava ali, deitado, apreciando as vozes de diferentes aves, a recitar seus poemas à vida, à eterna certeza do vir a ser, renovando minhas convicções...
Durante o dia remava tranquilo, horas a fio, pois estava cercado desses seres extraordinários, que se afeiçoaram a mim, como eu a eles. Nada dizíamos uns aos outros, mas estávamos lá, convivendo e compartilhando nossas existências...
Poderia ter ficado ali para sempre, não fora a presença de outros seres humanos, que me contaminaram de suas idéias equivocadas, alertando-me para os perigos... não que eles não existissem, mas eram esses os meus desafios, minha sentença de vida, superação e coragem. Fui envenenado por essas opiniões... e parei... agora estou aqui, desconsolado e só...

sexta-feira, 17 de julho de 2009

A Cachara

Minha mãe estava prenhe de mim quando meu pai morreu. Estava quase pra parir e ainda ia, todas as manhãs, bem cedinho, na barranca do rio, ver as “pindas” que tinha deixado lá no fim da tarde... pegava sempre alguma piranha, às vezes um bom surubim, raramente um dourado... mas dava pra ela dar de comer pra meus seis irmãozinhos; o mais velho tinha nove anos, e ficava tomando conta dos outros enquanto ela estava no rio ou cuidava da horta no fundo do sítio.

Naquele dia que eu nasci, minha mãe estava na beira do rio, tirando uma cachara grandona que se enroscara na rede deixada na corredeira; ela lutava com o peixe, ainda vivo, e tentava arrastar a rede, presa nos entulhos e cheia de galhos quebrados; a única coisa que prestava era aquela cachara!

De repente, com a força que fazia pra puxar a rede, eu nasci! Pois é, não consegui me segurar lá dentro, e caí no barranco, rolei pra dentro do rio, levando a mãe comigo... ela ainda conseguiu se segurar nas raízes de uma árvore e me puxou, pelo cordão, me segurou pela cabeça, e me arrastou pra cima do barranco, como se eu fosse a cachara deixada na rede lá embaixo!

Não me lembro nada disso; foi ela que me contou depois, rindo da minha desgraça de nascer desse jeito desajeitado! Todo mundo me gozava, dizendo que eu nasci de uma cachara! Assim ficou o meu nome: Maria das Dores, a “Cachara”! Nunca me livrei do apelido e hoje sou apenas a Cachara...

Cresci quase sem cuidados, sujinha no meio daquela molecada danada de ruim comigo! Era como se eu fosse uma boneca de pano, levada pra todo lado, que minha mãe não tinha tempo de me cuidar mesmo: estava sempre lidando na horta, limpando seus peixes, fazendo comida, lavando roupa, varrendo a casa... e eu lá, pendurada no colo dos moleques, como um brinquedo velho!

Minha mãe morreu quando eu tinha oito anos. Quase não me lembro dela... só da trabalheira danada que ela tinha pra manter seus sete filhos: seis meninos e eu. Ela nem se dava conta da gente, atarefada de dia, cansada demais de noite pra ter disposição de olhar pra gente... coitada!...

Mesmo assim, sinto falta dela... depois que ela morreu, meus irmãos mais velhos cuidavam de tudo, meio desengonçados, pois ela nunca preparou a gente pra viver sem ela. Ninguém sabia pescar, ninguém sabia nadar, ninguém sabia cozinhar... só o que sabíamos era lavar as louças, as roupas, limpar o quintal e varrer a casa, porque isso minha mãe deixava pra gente cuidar.

Ela morreu afogada, quando um dourado puxou a rede com ela junto, pra dentro daquela lameira toda, que corria com as águas do rio... ela não sabia nadar. Meu pai também morreu no rio, só que de morte matada; um jagunço cismou que ele era o sujeito que tinha contado pra polícia sobre um crime que cometeram lá em Doresópolis. Ele ficou preso dez anos e depois voltou pra matar meu pai. Nunca me disseram se ele tinha mesmo entregado o assassino...

Crescemos juntos até que meu irmão mais velho resolveu ir embora. Ele disse que ia cuidar da vida, que “aquilo não era vida” pra um homem feito! “Aquilo” era a gente: cuidar da gente, pescar e fazer as vezes da mãe que nunca tive... mas isso ele também não fazia. Nunca mais voltou.

A gente aprendeu mesmo a se cuidar depois que ele se foi. Aprendi até a pescar e fiquei boa nisso. Peguei muito peixe naquele rio; era eu também que fazia a comida e lavava as roupas, porque “isso é trabalho de mulher”, eles me diziam, rindo da "Cachara"! Eu só não pescava cachara; quando elas se enroscavam na minha linha eu jogava de volta pro rio, que já bastavam as piadas que eu ouvia...

Meus irmãos também se foram por esse mundão de Deus; cada um, do seu jeito, saiu, assim, de repente, sem se despedir, que a gente não era mesmo de muitos agrados e chamegos. Fui ficando sozinha, ali no meu rancho, envelhecendo sem ninguém do meu lado; nunca soube o que era o amor, que pai não conheci, e minha mãe não encontrou mais ninguém depois que o pai se foi.

Hoje me olho nas águas do Velho Chico e vejo minha mãe, estampada no meu rosto. Sou igualzinha a ela, rosto fino, enrugado dos anos, pele seca e desbotada, olhos tristes e quase se fechando... nem me cuido direito, vivo com meus trapos velhos, perambulando pela plantação abandonada, ou conversando com meus peixes na barranca do rio; às vezes pego um deles e me desculpo antes de cozinhar, porque preciso viver... preciso viver? Não sei o que isso quer dizer...eu sou apenas a "Cachara", preta velha e cansada, sem saber porque nasci...

Esse texto fará parte do livro "Meu Velho Chico", a ser publicado ao final da expedição.

domingo, 12 de julho de 2009

Meu destino em ti...

Não houve tempo de esperar que me aceitasses... entrei em tua intimidade como em um estupro! Violei tuas águas, tuas praias, tuas matas... invadi tuas beiras e me apossei dos espaços roubados de teus filhos, as aves, os peixes, os seres até então ocultos em teus recônditos segredos... nossos caminhos se entrelaçaram, não por tua vontade, mas pela minha, ansioso por desvendar os teus mistérios...

A princípio, nada encontrei que me detivesse a marcha; como um visitante indesejado, percorri teus vales e descobri teus súditos, vassalos teus, tributários de tua grandeza a doar suas vidas para te enriquecer e te encorajar ao grande salto, inevitável, no vazio...

Por instantes segui outros caminhos, como quem oculta as intenções, e vi o momento em que te projetavas sobre as rochas, como quem se atira ao desconhecido, destemido, inconsequente e audaz como qualquer adolescente. Busquei tua calma e em teu colo me deitei, levando-me contigo à revelia, para onde estivesses a ir, não me importava...

Percebi, então, que tu também não conhecias o teu destino, e me encantei por ti... e assim nos tornamos íntimos, cúmplices dos mesmos segredos, que desvendávamos a cada anoitecer... tu me aceitaste assim, em minha fragilidade, mais vulnerável até que as cristalinas águas de tua alma, teu corpo e razão do existir...

Daí, então, seguimos juntos, amantes apaixonados, um ao outro nos levando, sem um propósito qualquer,senão o de seguir adiante. À nossa volta, a presença de outros seres, assim tão íntimos e livres como o ar, as águas, o som, as cores, os inebriantes aromas...

A cada dia, em cada despertar, a ansiedade enlouquecida de nossas contradições: um ser que nasce e morre sem cessar, criança, jovem e velho a um só tempo, e outro ser que morre e envelhece, no inexorável badalar das horas, a me levar daqui... e mesmo neste ser envelhecido, o jovem e a criança permanecem, ao menos nas lembranças; e isso torna a ambos companheiros, ainda que um só, e tão somente, irá permanecer ao fim do longo dia, quase eterno, da jornada...

Porém, os dias às noites sucedendo, de ti surrupiaram a inocência, das águas te roubaram a pureza cristalina, das margens desnudaram tuas vestes... e as aves, tuas amigas, te deixaram, assim como as outras criaturas, tão belas, tão ingênuas... e eu, desiludido, desencantado, a tudo assim presenciava, aturdido, impotente... roubaram-te de mim em pleno dia!

Das praias, em lama, as alvas areias se tornaram; das matas, somente um ralo mato é que restou; dos morros, às águas, o solo fértil se deixou arrastar, turvando as tuas águas, matando pouco a pouco nossos peixes, cobrindo de barro o leito fundo, a se deixar levar contigo a outras plagas.

Uma angústia, um nó entalado na garganta, tristeza inconsolável de mim se apoderou, ao presenciar as árvores, às centenas, arrancadas, ancoradas em teu leito devastado... assim, seguimos juntos e calados, dias e noites a prantear a maldade dos homens, como eu... roubaram-te a beleza, saquearam-te as riquezas... transformaram-te nessa estrada lamacenta, a fluir, incessantemente, em direção ao mar.

Infeliz, como um amante atraiçoado, recusei continuar... e me afastei de ti, ferido mortalmente, cansado, desiludido e só.

Precisarei regressar um dia, e resgatar tua pureza, restaurar tuas vestes, trazer de volta a vida que tiveste... e então renasceremos juntos, e tu me levarás ao meu destino, que é também o teu... repousarei de novo em tuas margens, presenciando a iluminada Via Láctea, a derramar estrelas cintilantes em teu regaço, até o repositório infinito do Oceano... e encontrarei, em ti, a minha Paz!

Esse texto fará parte do livro "Meu Velho Chico", a ser publicado ao final da expedição.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A História dos Vencedores

Dizem que a história da humanidade é a história dos vencedores. O problema é que sempre há somente um vencedor e milhares de vencidos! E são vencidos aqueles que chegam em segundo lugar, em terceiro... em último lugar! Quem não chega também é um dos vencidos...
Seria, portanto, essa História, apenas o registro de uma elite, uma minoria inexpressiva na realidade dos homens... apenas uns poucos privilegiados seriam lembrados para sempre, eleitos para a glória, erguidos aos altares da fama e do sucesso.
Quem lê a História tem a impressão de que tudo existiu pelos excessos do homem: o Bem, o Mal, o Saber, a Arte, a Violência, a Generosidade, o Heroísmo, a Covardia...
Em nossas mentes ficaram somente alguns nomes, como Jesus, Calígula, Hitler, Einstein, Budha, Beethoven, Lennon, Caxias, Marx, Lincoln... Bin Laden...
Mas foram milhões, bilhões de seres que, através dos tempos, doaram suas vidas, seu suor, suas idéias, suas forças, seu trabalho... para que esses poucos escolhidos se tornassem famosos e ficassem registrados de forma indelével nos anais da História, pelo bem ou pelo mal. Quantos milhões morreram nas guerras? Só na Segunda Guerra Mundial foram mais de 33 milhões de mortos, mas apenas os 6 milhões de judeus continuaram relembrados... e só Hitler ficou para a História... alguns talvez se lembrem de Mussolini, ou de Churchil, De Gaule, ou mesmo Roosevelt... talvez alguém se lembre do Dia D, da bomba de Hiroshima, da invasão da Polônia... mas são apenas fragmentos dessa História.
Quem esteve de fato na guerra, paticipou dos combates, viu seus companheiros caírem feridos, morrerem, ficarem mutilados, quem se aproveitou da guerra para manifestar seus instintos mais primitivos, estuprando, roubando, destruindo apenas por prazer ou oportunismo, esses ficaram no esquecimento, no limbo da História, aquela que ninguém quer recordar.
Quantos deram suas vidas para que uns poucos se tornassem famosos?
Pois assim é a vida... assim ficará sempre registrada a passagem dos homens pela Terra. Quem ficou em segundo lugar na corrida de 100 metros das Olimpíadas da China? Quem "quase" bateu o recorde olímpico de salto em distância? Quem chegou em último lugar na Maratona? Bem, isso também já é demais! Mas alguém saberia o que fez aquele atleta para não vencer, quando todos nele confiavam, para "quase" ficar na história?
O que torna nossa existência possível e tolerável é sonhar, é acreditar que seremos diferenciados da grande massa que povoa esse planeta fantástico, trágico e belo... mas seria assim para todos? E aqueles que apenas sobrevivem nas areias do deserto, sem nunca tomar um banho por absoluta falta de água? E aqueles que foram trucidados nas guerras fratricidas dos árabes, palestinos e judeus, e que nunca souberam o que significa "PAZ"?
Pode ser que alguém pergunte o que isso tem a ver com minha expedição pelo rio São Francisco...
Tem tudo a ver! Quando decidi parar, interromper minha viagem, deixar de remar, abandonar minha canoa em Três Marias, voltar para casa, uma terrível sensação de fracasso, de derrota, de tristeza tomou conta de mim... ainda que eu tenha remado mais de 400 quilômetros (quantos já remaram tanto?), ainda que eu tenha superado meus limites, eu não conseguia conviver com a idéia da derrota... mesmo que não fosse uma decisão definitiva, mesmo que eu pretendesse retornar à minha jornada, essa sensação me deixou um gosto amargo na garganta...
Quando não recebi (quase) nenhuma manifestação de solidariedade, as noites se tornaram longas e tristes para mim. E não adiantava ver as 250 fotos que tirei, ou assistir às mais de 3 horas de vídeo que gravei, ou ainda ler as quase 100 páginas de textos que escrevi em meu diário de bordo... sentia-me mais solitário aqui, no meio da civilização, do que no rio, à beira das matas, sozinho em meu barco, ou em meu acampamento.
Essa é a realidade da História... a história dos vencedores!
Pois não desisti; estou aqui, trabalhando para meu retorno. Quero fazer parte dessa história de vencedores, não por vaidade, nem pela glória de ser reconhecido pelo meu feito, mas pela sensação do dever cumprido, da missão terminada, dos resultados alcançados. Não desisti, pois não desisto nunca!

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