Fala-se muito, hoje, da necessidade de revitalizar, preservar e conservar Bacias hidrográficas. Revitalização de Bacias hidrográficas passou a ser assunto recorrente na mídia, sobretudo desde que essa se interpôs no caminho da transposição de águas do Rio São Francisco para o chamado Nordeste Setentrional. Como a expressão é citada por leigos, especialistas e aficionados, acaba por não ter um conceito bem definido. Cada um usa esta palavra-chave de acordo com seus interesses.
Por certo, a palavra “revitalizar” não poderá significar a acepção literal “devolver a vida perdida”, que isso é impossível. Mas, deverá estabelecer como meta recuperar a vitalidade, revigorar, dentro do possível, usando de todos os instrumentos disponíveis.
Porém, a disponibilidade de dados sobre a condição do Rio São Francisco, por exemplo em relação a um monitoramento contínuo da qualidade de água ou um levantamento da fauna aquática, é ainda muito precária. Mas os indícios da degradação já são tão alarmantes que mesmo sem levantamentos consistentes o estado deplorável da Bacia fica óbvio.
Neste artigo, discutimos a revitalização da Bacia do Rio São Francisco, verdadeira apenas se enfrentar os seus principais problemas, que são causas e resultados de um processo relativamente acelerado de degradação por usos sobrepostos, cumulativos e indisciplinados.
Os principais usos econômicos do São Francisco – produção de energia e agricultura irrigada – bem como os outros usos de seus recursos naturais, tais como mineração, carvoarias e siderurgia, remetem à permanência de um modelo de exploração econômica, que se não for substancialmente modificado, de nada adiantará esforços de revitalização.
Infelizmente, é esse o caso atual. O programa de revitalização do governo federal é tímido, não vai às raízes dos problemas, funciona mais como ”moeda de troca” da transposição, oferecida aos críticos dessa e ao povo da Bacia que resiste a aceitá-la.
As bases e razões do artigo provêm, além da pesquisa em dados secundários, da experiência dos autores junto a grupos e comunidades populares de vários segmentos da população, no projeto Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco – CPT/CPP, há três anos desenvolvido em toda a Bacia. A idéia-proposta mobilizadora “São Francisco Vivo - Terra e Água, Rio e Povo” sintetiza a integridade ecológico-política do que entendemos por revitalização.
1. Indícios e causas da degradação
Para poder propor ações revitalizadoras consistentes, eficazes e eficientes, por primeiro, é preciso analisar porque o Rio São Francisco precisa de revitalização e quais as principais causas da degradação, da perda da vitalidade, que seriam, forçosamente, as frentes principais da revitalização, fosse para valer essa revitalização.
Dos indícios de degradação salta aos olhos o assoreamento. Calculam-se 18 milhões de toneladas de arraste sólido carreados anualmente para a calha do rio, até o reservatório de Sobradinho. A erosão, que é fruto do desmatamento e do conseqüente desbarrancamento (vide embaixo), além de alargar a calha do rio, gera uma carga elevada de sedimentos, que forma bancos de areia e “ilhas” (as chamadas “coroas” ou “croas”, no linguajar ribeirinho), constantemente se movendo e mudando de lugar.
O Rio São Francisco, pode-se dizer, é um milagre da natureza, pois faz o capricho de correr ao contrário e se estende do Sul mais baixo para o Norte mais alto, devido à falha geológica denominada “depressão sanfranciscana”. Isto o torna muito vulnerável, pois a pequena declividade (em média 7,4 cm por km) na maior parte de sua extensão, justamente a que recebe poucos afluentes, favorece o desbarrancamento e o assoreamento.
O assoreamento provoca anualmente uma perda de 1% da capacidade dos reservatórios (Coelho 2005, 138-139). Um indicador deste processo acelerado de assoreamento é a condição precária atual de navegabilidade do Rio São Francisco. Até pouco tempo o Rio era navegado sem maiores restrições entre Pirapora e Petrolina/Juazeiro (1.312 km), no médio curso, e entre Piranhas e a foz (208 km), no baixo curso. Hoje só apresenta navegação comercial no trecho compreendido entre os portos de Muquém do São Francisco (Ibotirama), na Bahia, e Petrolina/Juazeiro, na divisa entre Bahia e Pernambuco. Mesmo neste trecho, a navegação vem sofrendo revezes por deficiência de calado, sobretudo na entrada do lago de Sobradinho, onde um intenso assoreamento multiplica os bancos de areia (ANA et al. 2004b, 32).
Outro sinal alarmante da situação deplorável do Rio é a diminuição da sua vazão. Em 2001 o reservatório de Sobradinho chegou a 5% de sua capacidade (ANA et al 2004b, 20-21), em outubro de 2007 chegou a um pouco mais de 20% . Em combinação com a elevada carga de poluição doméstica e industrial que cai no Rio, o ecossistema aquático, nos períodos mais secos, regularmente chega ao colapso. O resultado são mortandades de peixes.
Em outubro de 2007, aconteceu em proporções inéditas um desastre ecológico decorrente desta poluição e da diminuição da vazão: uma contaminação com algas azuis (cianobactérias) que se proliferaram no Rio das Velhas e no Médio São Francisco, levando a uma enorme mortandade de peixes e à inadequação da água para consumo humano e animal, enquanto não aumentasse o volume com a chegada das chuvas nas cabeceiras. A infestação é efeito de uma alta concentração de emissões de esgotos domésticos e industriais, de agroquímicos e fertilizantes usados nas lavouras, que resultam em uma eutrofização dos cursos d’água. O mais problemático é o Rio das Velhas que coleta a maior parte do esgoto da região metropolitana de Belo Horizonte e que por isso é um dos rios mais poluídos da Bacia do São Francisco. Esta contaminação com cianobactérias mostra que em épocas de poucas chuvas o Rio não consegue mais diluir os poluentes. Mesmo com algumas melhorias dos sistemas de saneamento nos córregos Arrudas e Onça, em Belo Horizonte, o Rio não suporta mais carga de poluição, não tem mais capacidade de diluição das emissões. Isso pode ser causado por um aumento de poluição mas com certeza é um indicador da diminuição da vazão. Além disso, este desastre leva à tona o fato que a eutrofização pela agricultura intensiva não é resolvida com melhorias no saneamento ambiental das cidades.
Outro indicador bastante claro mas pouco considerado pelas autoridades é a diminuição constante do pescado no Rio São Francisco.
Para entender as causas dos sinais de degradação do ecossistema de um Rio é preciso olhar além da calha do Rio e observar toda a sua Bacia hidrográfica. O programa oficial de revitalização acintosa e sintomaticamente se nega a esse olhar ou não tira dele todas as conseqüências de decisão política.
1.1. Avanço descontrolado da agricultura intensiva de irrigação
Como uma das principais causas de degradação do Rio São Francisco, o modelo de produção agro-industrial vigente na Bacia vem causando uma cadeia de problemas ambientais. Desde os anos 70 a Bacia do Rio São Francisco vive uma acelerada e desenfreada expansão da agricultura intensiva.
Uma região em especial, onde a expansão de grandes monoculturas agrícolas de exportação se deu rapidamente e com impactos fatais é o Oeste da Bahia, no Médio São Francisco. Nesta região desde o fim dos anos 70 vem se expandindo a produção de grãos, como soja e milho, mas também algodão e pecuária. Deu-se um desmatamento muito rápido de grande parte da vegetação natural do Cerrado. Este avanço fica evidente na constatação de que na Bahia a área de produção de soja triplicou de 282.600 ha em 1990/91 a 872.600 ha em 2005/2006, sendo que o principal pólo deste cultivo fica no Oeste do Estado (Schlessinger & Noronha 2006, 28). Esta região é o epicentro do boom do cultivo da soja no Nordeste. Numa região onde há 25 anos predominava a produção de gado extensivo, hoje tem 1,5 milhão de hectares de agricultura intensiva de produção de grãos (Brannstrom & Filippi 2006, 277). O avanço do agro-negócio em grande parte da Bacia do Rio São Francisco tem efeitos catastróficos.
1.1.1. Desmatamento do Cerrado
O Cerrado é fundamental como manancial das águas que formam a Bacia do Rio São Francisco; ele é “é a caixa d’água do São Francisco”, como de resto, das principais Bacias nacionais. Os afluentes mais importantes nascem e crescem ali: os Rios Paracatu, das Velhas, Grande e Urucuia (ANA et al. 2004b, 21). O Cerrado é conhecido como a “floresta invertida” porque ele tem mais matéria orgânica vegetal no subsolo do que na parte superior do solo. O extenso sistema radicular das árvores capta água armazenada no fundo no subsolo nos períodos secos e é capaz de reter no mínimo 70% das águas das chuvas. Estas águas alimentam os lençóis subterrâneos, que por sua vez alimentam as nascentes, as veredas, as lagoas, os córregos, os riachos e os rios. Depois do desmatamento, todo o ciclo hidrológico é alterado. No Oeste da Bahia, com apenas 25 anos de exploração agrícola, registra-se o desaparecimento de inúmeros mananciais importantes (Sales 2006). As vazões dos afluentes do Rio São Francisco estão diminuindo devido aos mais de 600 pivôs centrais operando na região; em 1989 eram apenas 35 pivôs (Brannstrom & Filippi 2006, 282). Muitos afluentes do Rio São Francisco anteriormente perenes viraram rios intermitentes, devido ao excessivo e incontrolado uso das suas águas para irrigação. Em geral, dos 36 afluentes do Rio São Francisco, 16 rios até então perenes viraram intermitentes; entre eles se destacam o Rio Verde Grande e o Rio Salitre (Coelho 2005, 133).
O desmatamento do Cerrado é alarmante, chegando a 1,5% ou três milhões de hectares/ano. Isso equivale a 2,6 campos de futebol por minuto, uma velocidade duas a três vezes maior do que na Amazônia. Mantendo-se este quadro o bioma corre o risco de desaparecer até 2030. Dos 204 milhões de hectares originais do cerrado, 57% já foram completamente destruídos pelo processo de expansão da agricultura moderna e a metade das áreas remanescentes está bastante alterada e fragmentada (Machado et. al., 2004; Klink, 2005).
Além da perda de biodiversidade e do efeito dramático de extinção de mananciais, o avanço dos grandes monocultivos na região do Cerrado causa fortes processos de erosão. Até dolinas (grandes depressões provocadas pela dissolução de solos calcários, resultantes da supressão vegetal e rebaixamento do aqüífero), que ocorriam nos Cerrados mineiros já se observam também nos baianos. Os solos desta região são muito suscetíveis a processos erosivos devido ao pouco teor de argila. O cultivo convencional de produção de soja pode levar a uma perda de solo de 25 ton/ha/ano. Este solo que está sendo levado pelos afluentes do Rio São Francisco contribui em grande parte para o assoreamento acima referido.
1.1.2. Supressão da mata ciliar
Ainda mais drástica é a situação das matas ciliares do Rio São Francisco, elemento fundamental para o controle da erosão nas margens e para minimizar os efeitos das enchentes. Essas chamadas “matas de galeria” são essenciais para o equilíbrio ambiental, também por manter a quantidade e a qualidade das águas, pois funcionam como filtro natural dos possíveis resíduos de produtos químicos como agrotóxicos e fertilizantes, além de representar habitat muito importante para a fauna. No caso do Rio São Francisco estima-se de que 96% das matas ciliares das suas margens já foram destruídos.
1.1.3. Super-exploração dos mananciais pela agricultura irrigada
De toda vazão retirada do Rio São Francisco, 68% da água são usados para irrigação. A partir de meados dos anos 70 observa-se um crescimento quase exponencial da demanda de água devido à implementação de grandes projetos de irrigação. Em muitos dos 342.712 hectares de agricultura irrigada na Bacia do Rio São Francisco o uso de água se dá sem planejamento técnico e sem drenagem. Equipamentos de baixa eficiência, como pivôs centrais, causam grande desperdício.
A maior demanda de água na Bacia é da irrigação que se concentra no Médio e Submédio São Francisco. Implementados pela CODEVASF, são 26 perímetros irrigados no vale do São Francisco, e abrangem 105 mil hectares (quase 30% da área irrigada total). Das áreas irrigadas dentro da Bacia 13% ficam no Alto São Francisco, 50% no Médio, 27% no Submédio, e 10% no Baixo. As áreas de maior prática da irrigação são o Norte de Minas (os perímetros Gorutuba, Pirapora, Jaíba e Janauba), a região de Belo Horizonte, o Distrito Federal; no Médio São Francisco, as regiões de Formoso/Correntina, Barreiras, Guanambi e Irecê, na Bahia; no Baixo São Francisco, o Platô de Neópolis, em Sergipe. Especial destaque merece a região de Juazeiro-BA/Petrolina-PE (ANA et al. 2004b, 30).
Os grandes perímetros de irrigação foram concebidos e financiados como projetos públicos, contemplando também pequenos e médios produtores (colonos). Porém, ao longo dos anos, houve um forte processo de concentração das terras irrigadas na mão de empresas privadas, hoje voltadas para a produção de frutas nobres para exportação, basicamente uva e manga, as que dão o retorno econômico que compensa.
A implantação de um perímetro de irrigação público começa pela desapropriação dos antigos ocupantes (em teoria, teriam prioridade para adquirir os lotes irrigados). A seleção de empresas se dá por meio de concorrência pública. A empresa vencedora se torna proprietária de uma área dentro dos perímetros “públicos”. Quanto aos colonos selecionados, só recebem o título de propriedade após um prazo de dois anos, tendo que comprovar que são bons produtores e pagadores. Caso contrário, o lote é colocado à venda, num processo chamado “seleção natural”. Desta forma grande parte das terras irrigadas muito valorizadas vem parar na mão de empresas (Bloch 1996, 32).
Em algumas regiões a super-exploração dos recursos hídricos da Bacia do Rio São Francisco já resulta em sérios conflitos de uso entre agricultura irrigada, geração de energia e abastecimento humano, como na sub-Bacias dos rios Paraopeba, das Velhas, Alto Preto, Alto Grande, Verde Grande, Salitre e Baixo São Francisco. Destacam-se as sub-Bacias do Verde Grande e do Grande, onde há forte expansão da irrigação, sem planejamento e ordenamento do uso do solo e da água. A área instalada com infra-estrutura de irrigação é maior do que as Bacias podem suportar (ANA et al. 2004b, 35).
Além disso os projetos de irrigação contribuem para a contaminação do rio, dos seus afluentes e dos corpos subterrâneos. Os grandes perímetros irrigados e monocultivos demandam uma quantidade enorme de agrotóxicos e adubos químicos. O excesso de água aplicada retorna para o rio, afluentes e depósitos subterrâneos, arrasta consigo sais solúveis, fertilizantes, resíduos de agrotóxicos e outros tóxicos. Porém, a contaminação e confirmação de presença de agrotóxicos na água é de difícil verificação. Considerando-se a extensão da atividade agrícola na Bacia, recomenda-se que seja feito um levantamento detalhado do uso de agrotóxicos e épocas de aplicação, para que seus impactos possam ser devidamente avaliados (ANA et al. 2004b, 23). Isso ainda não é feito com a freqüência e a regularidade necessárias.
A atual política de desenvolvimento agrário na Bacia do Rio São Francisco estimula um modelo baseado na irrigação. O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) prevê para o Nordeste um forte investimento público em infra-estrutura para “Desenvolvimento Hidro-agrícola” . Somente para a Bacia do Rio São Francisco são previstos nove grandes financiamentos para projetos de irrigação (vide tabela). Em total estão previstos 143.500 hectares de novos perímetros irrigados na Bacia, o que equivale a 42 % a mais da área irrigada hoje existente. Somente os projetos Baixio do Irecê e Salitre, na Bahia, representam 60% das novas áreas planejadas.
Esta política obsessiva de priorização da agricultura irrigada numa região semi-árida ignora os limites objetivos impostos à irrigação nesta região, pois apenas 5% dos solos do semi-árido são irrigáveis e há água apenas para irrigar 2% dos solos, segundo dados da Embrapa (Malvezzi 2007, 86-87).
Um estudo do Banco Mundial (2004) revela que muitos dos grandes projetos de irrigação no semi-árido, além dos graves impactos sociais e ambientais, nem economicamente sustentáveis são. Segundo este relatório apenas 4 dos 11 perímetros irrigados estudados apresentam retorno positivo. É de se perguntar se, diante de tantas obras inacabadas, mal aproveitadas, ou mesmo fracassadas, não seria conveniente ao erário público investigar melhor em que condições realmente a agricultura irrigada pode se tornar viável (Malvezzi 2007, 90).
Com este quadro de persistência do paradigma da agricultura irrigada nas políticas públicas para o Nordeste é fácil de deduzir que os problemas ambientais do Rio São Francisco acima descritos vão se agravar muito. Com isso as políticas públicas ignoram que a prevenção de uma contínua diminuição da vazão do Rio é estreitamente ligada às questões de políticas de desenvolvimento para as áreas de Caatinga e do Cerrado dentro da Bacia do Rio São Francisco. É preciso um aprofundamento da discussão sobre quais são os modelos de desenvolvimento sustentável destes biomas. Modelos unicamente baseado na expansão do agro-negógico, especificamente na agricultura de irrigação, pelas avaliações até agora conhecidas, não podem ser considerados sustentáveis.
Com o forte incentivo do governo à expansão das áreas irrigadas na Bacia do Rio São Francisco, fica ainda mais claro a inversão perversa das prioridades em relação ao uso da água nesta Bacia. Tendo em vista o último Censo nacional do IBGE, cerca de meio milhão de ribeirinhos que vivem em povoados perto da calha do Rio São Francisco sofrem com a inexistência ou a precariedade do abastecimento de água (Coelho 2005, 130).
1.2. Produção de carvão vegetal
Além do avanço da agricultura intensiva, uma das maiores causas do desmatamento na Bacia do Rio São Francisco é a carvoaria. O Brasil é o maior produtor de carvão vegetal do mundo: em 2004 foram produzidos 7 milhões de toneladas, dos quais cerca de 60% provieram de florestas plantadas e o restante de vegetação nativa da Caatinga e do Cerrado. O grande impulsionador desta produção e a indústria siderúrgica em Minas Gerais, que consome 95% da produção de carvão vegetal. Pelo fato de ser um insumo para um setor industrial de grande importância econômica essa questão tornou-se um dos problemas ambientais muito complexos (Coelho 2005, 134). A fiscalização da produção ilegal de carvão vegetal de matas nativas é muito complicada, numa região onde esta é uma das raras fontes de renda para muita gente que não encontra outra forma de sobrevivência.
E as alternativas são também muito problemáticas. Plantações de eucalipto para carvão vegetal leva à degradação dos solos e a um desequilíbrio hídrico. O elevado consumo de água na plantação de eucalipto pode contribuir para a diminuição das nascentes e da vazão dos corpos d’água (Coelho 2005, 136).
Contudo, o Complexo Mínero-Siderúrgico-Madereiro de Minas Gerais – os três setores da mineração, da siderurgia e do monocultivo de eucalipto interligados – traz impactos negativos diretos e indiretos em grande parte da região do Alto e Médio São Francisco: rebaixamento de lençóis freáticos, desmatamento da vegetação natural, contaminação das águas, do solo e do ar e desequilíbrio hídrico nas áreas plantadas com eucalipto.
1.3. Concentração de terra
Outro fator essencial comumente ignorado nas análises das causas de degradação é o problema fundiário da Bacia do Rio São Francisco. É a grande e irrestrita concentração da terra que possibilita o uso abusivo das terras e dos recursos naturais. Ao mesmo tempo leva a uma super-exploração das áreas de pequenos agricultores, que não tem alternativas ao não ser o desmatamento total das suas propriedades minúsculas.
No Oeste da Bahia se dá uma concentração extrema de terras. Dois terços das propriedades rurais têm mais de 500 ha, mas estas propriedades correspondem a menos de 5% do número total de propriedades rurais (Brannstrom & Filippi 2006, 277).
A falta de dados fundiários específicos da Bacia é sintomática. Uma verdadeira revitalização deveria partir do mapeamento fundiário da Bacia, ao par da iniciativa de um Zoneamento Econômico Ecológico. Na falta destes dados específicos, usamos como referência dados do Semi-árido. Esta região tem uma concentração fundiária extremamente intensa: 90% das propriedades têm área inferior a 100 hectares e detêm apenas 27% da área total dos estabelecimentos agrícolas.
Boa parte destas áreas é constituída de terras públicas. Das quase 23 milhões de hectares de terras estimadas como devolutas na Bahia (GeografAR, 2006), cerca de 60% estão na Bacia do São Francisco, segundo o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira.
1.4. Barragens e hidrelétricas
Uma das alterações mais visíveis e abruptas no ecossistema do São Francisco diz respeito às hidrelétricas, primeiro grande e exclusivista uso moderno das águas do rio. São sete hidroelétricas que modificaram profundamente e para sempre a vida de dezenas de milhares de famílias atingidas e o ecossistema do rio. Apenas com a construção da barragem de Sobradinho, que por muito tempo foi o maior lago artificial do mundo em espelho d’água (414 mil Km2), ocorreu uma remoção forçada de 72 mil pessoas, há 30 anos. Mais da metade destas pessoas era constituída de camponeses pobres, que dependiam do Rio para viver.
Calcula-se em 160 mil pessoas os atingidos por todas essas barragens. Além do imenso impacto social, as barragens tiveram sérios efeitos ambientais negativos alterando os ciclos de cheia e vazante do rio, comprometendo a reprodução das espécies ligada a esses ciclos.
Porque o fluxo das águas passou a ser determinado pelas usinas hidrelétricas, as represas trouxeram uma diminuição drástica na agricultura de vazante, causando uma notável redução das áreas que todos os anos eram fertilizadas pelas enchentes na estação chuvosa. Estas terras eram usadas para lavouras de ciclo curto, como as de milho, mandioca e feijão, produtos que abasteciam os centros urbanos do Médio São Francisco. Esta modificação do fluxo do Rio foi um golpe arrasador na chamada agricultura de vazante. Como a agricultura tradicional foi inviabilizada, sobretudo no Submédio e Baixo São Francisco, e com a falta de atividades econômicas alternativas houve impactos sociais muito graves (Coelho 2005, p.124-125).
Atualmente, o Rio São Francisco possui apenas dois trechos de águas correntes: 1.100km entre as barragens de Três Marias e Sobradinho, com tributários de grande porte e lagoas marginais; e 280km da barragem de Sobradinho até a entrada do reservatório de Itaparica. Daí para baixo transforma-se em uma cascata de reservatórios da CHESF.
Um grave impacto sócio-ambiental das represas se deu por impedir a inundação das lagoas marginais, berçários maiores da vida aquática do rio. Além disso, as barragens interromperam o ciclo migratório de várias espécies de peixes, entre elas, o piau, a matrinchã, o curimatá, o pacu e o pira (Coelho 2005, 126). Hoje a pesca artesanal, sobretudo no Baixo São Francisco, sofre grandes problemas de sobrevivência. Um indicador do tamanho do impacto é que foi praticamente extinto nesta região a espécie pirá, um peixe exclusivo do Rio São Francisco e que por isso o simbolizava.
1.5. Mineração e siderurgia
A Bacia do Rio São Francisco detém cerca de 20% do universo da atividade mineral oficial do país. De um total de 11.600 títulos minerários ativos, 2.320 estão inseridos na Bacia e 1.600 são de projetos que efetivamente exploram bens minerais e utilizam água nas suas operações. Isto embasa a constatação de que o setor mineral é um dos grandes usuários de água na Bacia do São Francisco. Por esta representatividade, faz-se necessário que haja maior controle de seu consumo de água, por meio do aumento das fiscalizações nas mineradoras. O tamanho deste desafio fica evidente quando se constata que, segundo estimativas, cerca de 40% da atividade mineral funcionam de forma clandestina.
Além do alto gasto de água, a mineração tem fortes impactos com o rebaixamento de lençóis freáticos, assoreamento e contaminação das águas, do solo e do ar.
Emblemático foi o caso do rompimento ocorrido na barragem de contenção dos rejeitos de uma mina de ferro, em meados de 2001, localizada na sub-bacia do córrego dos Macacos, que fica na região das cabeceiras do Rio das Velhas, causando uma poluição desastrosa. E os 40 anos de contaminação por metais pesados provocada pela industrialização de zinco à beira do São Francisco pela Votorantim Metais em Três Marias – MG, responsável pela mortandade de dezenas de toneladas de peixes, em especial surubins grandes. Como muitas minas ou garimpos estão localizados em regiões de difícil acesso e os controles e fiscalizações são negligentes ou ineficientes, ocorrências similares devem ser muito mais freqüentes do que chegam ao conhecimento da opinião pública.
A destruição da paisagem é outro impacto da mineração, pouco conhecido e menos ainda disciplinado e combatido. Do Pico do Itabirito, em Minas Gerais, com 1.586 m de altitude, historicamente muito utilizado como ponto de orientação, sobra apenas a ponta, o resto foi levado pela extração da hematita. A Serra do Curral, em Belo Horizonte, cujo perfil deu origem ao nome da capital mineira, hoje está reduzida a uma casca, que esconde todo vazio deixado pela mineração.
1.6. Falta de saneamento básico na Bacia
A avaliação da condição atual dos corpos d’água na Bacia do Rio São Francisco mostrou que as principais fontes de poluição são os esgotos domésticos, as atividades agropecuárias e a mineração. Dois indicadores de saneamento revelam um quadro preocupante na Bacia, com bastante desigualdade entre as regiões: o índice de 49,90% de rede de esgoto e de apenas 3,20 % de esgotos tratados (SEDU, 2003).
Observa-se o lançamento de efluentes industriais e domésticos e a disposição inadequada de resíduos sólidos, comprometendo a qualidade de rios como Paraopeba, das Velhas, Pará, Verde Grande, Paracatu, Jequitaí e Urucuia. A situação mais crítica é a da Bacia do Rio das Velhas que, além da grande contaminação das águas pelo lançamento de esgotos domésticos da Região Metropolitana de Belo Horizonte, apresenta elevada carga inorgânica poluidora, proveniente da extração e beneficiamento de minérios. Somente 33 municípios da Bacia tratam seus esgotos, representando 7% do total; 93% dos municípios da Bacia não possuem sistemas de tratamento. Igualmente precária é a disposição final de resíduos sólidos realizada de forma inadequada por 93% dos municípios da Bacia (ANA et al. 2004b, 23-29.).
Na região do Alto São Francisco, nas sub-Bacias dos Rios das Velhas e Paraopeba, os problemas identificados têm origem na mineração e na alta concentração populacional. Cerca de 30% da população da Bacia do Rio São Francisco vive na Região Metropolitana de Belo Horizonte, exercendo forte pressão sobre os recursos hídricos.
1.7. Desigualdade social e pobreza: injustiça ambiental
Esta somatória de degradações acaba, em última instância, impactando a parte mais fraca, qual seja, a população pobre da Bacia. Configura-se assim uma situação de extrema injustiça ambiental, entendida como “a condição de existência coletiva própria a sociedades desiguais onde operam mecanismos sócio-políticos que destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, população de baixa renda, segmentos discriminados pelo racismo ambiental, parcelas marginalizadas e mais vulneráveis de cidadãos” .
Os dados sócio-econômicos mostram que a Bacia Hidrográfica do rio São Francisco possui fortes contrastes socioeconômicos, abrangendo áreas de acentuada riqueza e alta densidade demográfica e áreas de pobreza crítica (ANA et al. 2004b, 16). Ela é caracterizada por densidades demográficas altas em contraste com vazios demográficos, áreas altamente industrializadas e áreas de predominância de agricultura de subsistência (ANA et al. 2004a, 42).
Os indicadores socioeconômicos comumente mais usados são taxa de mortalidade infantil, Índice de Desenvolvimento Humano -- IDH e Produto Interno Bruto. Aplicados à Bacia do Rio São Francisco, temos, pela primeira, que há variações entre 25,66 (MG) e 64,38 (AL) entre 1.000 nascidos vivos; em sua maior parte, a Bacia apresenta valores superiores à média nacional, que é de 33,55 (IBGE, 2000). O IDH varia entre 0,633 (AL) e 0,844 (DF). Existem municípios com IDH 0,343 (a média brasileira é de 0,769). O PIB per capita contempla variações entre R$ 2.275 e R$ 5.239, enquanto a média nacional é R$ 5.740.
Sobretudo no Médio, Sub-médio e Baixo São Francisco, IDHs de menos 0,5 são comuns. Nestas regiões há poucas "ilhas de prosperidade", com um IDH acima de 0,62, como os municípios de Petrolina, Juazeiro e Barreiras onde o agro-negócio suscitou grande crescimento das economias locais. Porém, esse grande aumento do Produto Interno Bruto destes municípios não produziu efeitos de desenvolvimento social, como mostra o exemplo emblemático do Oeste da Bahia, onde se situa o município de Barreiras.
Nesta região que é reconhecida pelas safras recordes, a riqueza (PIB) aumentou em 245,6% de 1991 a 2000, enquanto no mesmo período a miséria aumentou, ao ponto em que 71,78 % dos 800.000 habitantes da região são classificados como indigentes (renda inferior a meio salário mínimo) . Na Bahia estes são 55,30% e no Brasil 32,34%. Os dados econômicos sugerem uma distorcida impressão de “Eldorado”: de fato esta nova riqueza está ainda mais concentrada nas mãos de poucos.
A situação de concentração de renda na Bacia é sintomática para o Nordeste, onde o Índice de Gini se elevou, passando de 0,596 para 0,61 entre 1970 e 2000. Uma comparação da renda entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres no Semi-árido brasileiro revela com maior nitidez a persistência das desigualdades sociais: em 2000, o percentual da renda apropriada pelos 10% mais ricos chegava a 43,7%; enquanto que a renda dos 40% mais pobres era de apenas 7,7%.
Com isso fica óbvio que há alguma coisa errada com este modelo econômico. A julgar pelos resultados sociais dos projetos de irrigação, eixo continuado do modelo agrícola e do desenvolvimento, a despeito das iniciativas de revitalização, esse quadro não deve melhorar. Tais projetos não melhoram a vida dos ribeirinhos. A remuneração continua baixa e cresce a prática do trabalho degradante. Em 1998, as pessoas diretamente empregadas no perímetro de irrigação tinham um salário médio equivalente a dois salários mínimos.
Também não se pergunta pela qualidade dos empregos gerados pela irrigação. Nos perímetros de Juazeiro e Petrolina formaram-se bairros inteiros miseráveis, insalubres, onde as populações empregadas na irrigação aglomeram-se para sobreviver. Tornaram-se mão-de-obra sazonal e barata na irrigação, ora morando nos bairros periféricos, ora morando do lado de fora das cercas e muros que isolam os perímetros irrigados, como estranhos em terras que já foram suas. São aí altíssimos os índices de criminalidade, prostituição e violência.
2. O Programa de Revitalização do Governo Federal
Apesar das denúncias reiterativas sobre o agravamento dos problemas do Rio São Francisco e dos insistentes apelos por medidas de salvação, feitos por entidades dentro e fora da Bacia, foi mesmo como manobra pró-transposição que um programa oficial de revitalização foi apresentado pelo governo federal. Ao que consta, foi num seminário promovido pela CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil / Regional Nordeste 3 – Bahia/Sergipe, em Salvador, em 1999, que pela primeira vez se levantou a bandeira “Transposição Não, Revitalização Sim!”. Aos protestos e cobranças o governo federal reagiu, a partir de 2003, com um programa de revitalização que ganhou visibilidade política desde o avanço do projeto de transposição e da reação popular contrária.
2.1. Concepção e estrutura do Programa de Revitalização do Governo
Conforme publicações do programa as ações de revitalização “consistem em obras de saneamento básico e ambiental, como as de coleta e tratamento de esgoto sanitário, de macrodrenagem, de tratamento de resíduos sólidos, de contenção de desmoronamento de barrancas e de controle de processos erosivos, além daquelas destinadas à melhoria da navegabilidade e da recuperação de matas ciliares”. Já nesta listagem de diversas ações percebe-se a falta de precisão conceitual para elaborar um programa consistente e abrangente.
O conceito técnico-científico de "revitalização" implica melhorar os principais aspectos de um ecossistema, recuperando processos e elementos-chave para fins de cessar e reverter o estado degradado do mesmo. O objetivo de medidas de revitalização não é remediar os sintomas de um sistema degradado, mas o combate das causas desta degradação (Woolsey et al 2005, 21-22). Como todo planejamento, um programa de revitalização deveria partir de um diagnóstico aprofundado.
A análise das causas de degradação, abordadas acima de forma muito resumida, ainda é muito incipiente dentro do programa governamental de revitalização. O Zoneamento Ecológico-Econômico da Bacia do São Francisco, que está sendo elaborado desde 2005, ainda não está concluído. O Consórcio ZEE Brasil que congrega, sob a coordenação do Ministério do Meio-Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, técnicos e especialistas de dezesseis instituições e empresas públicas, ainda está “consolidando a base de informações” , que é essencial para identificar os diferentes graus de vulnerabilidade ambiental e social na Bacia. Ele deveria ser um pré-requisito sine qua non para orientar o planejamento do programa de revitalização.
O Zoneamento Ecológico-Econômico traz informações sobre as potencialidades, vocações, fragilidades, suscetibilidades e conflitos de um território. Ele deve definir as atividades que podem ser desenvolvidas em cada compartimento e assim orientar a forma de uso, eliminando os conflitos entre tipos incompatíveis de atividades. Sua visão sistêmica propicia a análise de causa e efeito entre os subsistemas físico, biótico, social e econômico (Dos Santos 2005, 133-137).
Como depois de dois anos de trabalho ainda não existe nenhuma publicação deste ZEE da Bacia do São Francisco, sustenta-se a interpretação de que um diagnóstico sólido e suficiente da Bacia não está sendo tratado com a devida prioridade pelos órgãos responsáveis.
Outro forte indício dessa avaliação são os recursos. No período de 2004 a 2006, foram investidos em ações de revitalização do São Francisco R$ 242,5 milhões. Desde 2007 o programa é atrelado ao PAC – Plano de Aceleração do Crescimento, que prevê para ações de revitalização no Rio São Francisco um orçamento de 147,7 milhões para 2007 e em total 1,27 bilhões até 2010 (Ministério da Integração Nacional, 2007). Esta verba é administrada pelo Ministério de Meio Ambiente e pelo Ministério da Integração Nacional.
As principais ações em 2006 foram: construção de Centros de Referência, instalação de viveiros para cultivo de mudas de plantas nativas, obras de engenharia de contenção das erosões nas margens e de controle de processos erosivos, de desassoreamento e limpeza de rios, de macrodrenagem urbana, obras de esgotamento sanitário em vários municípios e tratamento de esgotos sanitários em alguns outros, construção de galpões de recolhimento de embalagens de agrotóxicos, ações de reflorestamento e cercamento de nascentes, margens e áreas degradadas. Dos investimentos do Ministério da Integração, em 2005, mais da metade foi gasto para obras de saneamento ambiental. Em 2007 esta porcentagem tende a aumentar.
Sem dúvida as obras de saneamento são de grande importância para a melhoria da qualidade da água do Rio São Francisco. Porém, pode-se questionar a forte priorização destas obras tendo em vistas as outras causas de degradação igualmente importantes. Com esta concepção e distribuição de investimento o programa fica refém de uma visão sanitarista de revitalização. O enfoque centrado em saneamento desconsidera as outras causas de degradação acima referidas. Além disso, perde efetividade em relação à carga total de poluição, uma vez que essa em grande parte também é oriunda de resíduos das atividades agrícolas, como agrotóxicos, e da mineração, como metais pesados. Muitas das obras executadas relacionadas ao saneamento ambiental se restringem ao esgotamento sanitário urbano, que garante a coleta, porém não o tratamento dos esgotos.
Em relação às obras de desassoreamento e de contenção de erosão das margens, fica evidente que se trata de ações curativas que não atingem as causas da erosão relacionadas ao desmatamento descontrolado. Também as atividades de reprodução de mudas e de reflorestamento não são nada mais do que um pingo d’água diante das fortes pressões sobre as matas nativas na Bacia. Dentro do princípio da precaução, o primeiro passo deveria ser a garantia de um ordenamento e controle do uso de solo. Reflorestamento sempre se restringe à uma ação corretiva da depredação das florestas nativas.
Especialmente no que diz respeito ao reflorestamento de mata ciliar cabe ressaltar que a vegetação ao longo da calha do Rio por si só não é capaz de conter processos de erosão em grande escala que se dão nas regiões das cabeceiras, nas áreas de recarga, mais ou menos distantes da calha dos rios da bacia. Um programa de revitalização não pode ser reduzido e simplificado como reflorestamento de mata ciliar, o que parece se tornar símbolo e panacéia da recuperação hidro-ambiental de rios.
Numa visão mais abrangente o programa de revitalização deveria também considerar medidas para garantir um consumo racional da água, evitando a super-exploração da vazão do Rio e seus afluentes, sobretudo pela irrigação e a mineração.
Dentro do programa foram promovidas muitas reuniões e muitos eventos, mas as medidas realizadas são pontuais. A estrutura do programa dá a impressão de uma “colcha de retalhos” juntando vários projetos requentados, elaborados anos atrás, embaixo de um programa “guarda-chuva” mas sem visão estratégica e sistêmica.
Devido à aplicação de parcos recursos em projetos fragmentados, desarticulados e sem continuidade, não existe um programa nem um processo que pense a Bacia no seu conjunto.
Em vez de uma pulverização de ações isoladas é necessário estabelecer um consistente Programa de Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido e do Cerrado e da Bacia Hidrográfica do São Francisco, com início, meio e fim, metas plurianuais, indicadores mensuráveis, no contexto do qual seja possível estabelecer uma ação integrada de Governo, dos agentes econômicos e da sociedade civil visando o enfrentamento definitivo da falta de água assim como os conflitos de uso dos recursos naturais e a recuperação hidro-ambiental do Rio e seus afluentes (Coelho 2005, 223-224).
Como explicado encima, as principais causas de degradação do Rio São Francisco são estreitamente ligadas a problemas estruturais do uso do solo, das águas e dos demais recursos naturais da Bacia. Mas o programa do governo calculadamente se desvia destas causas ligadas à produção agrícola de exportação e à mineração. As ações desenvolvidas não alteram ou não influenciam no modelo de uso da terra e na situação fundiária, que é a principal causa da degradação do Rio, e sequer partem de análises das causas e efeitos do modelo de produção.
2.2 Gestão do programa e falsa participação – revitalização como barganha da transposição
Segundo informações do governo o Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica foi concebido de “forma coletiva e vem sendo aprimorado de modo participativo” . De fato foi criado um sistema complexo de instâncias colegiadas formais, a nível federal, estadual e municipal, com o envolvimento da sociedade civil organizada. São elas, o Comitê Gestor do Programa de Revitalização, o Grupo de Trabalho da Revitalização, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, os Núcleos de Articulação do Programa (NAPs) e as Comissões Locais de Meio Ambiente e Ação Socioambiental (COLMEIAS) (Aroucha 2007,1).
Contudo, a experiência dos últimos anos mostrou que estas instâncias sempre foram dominados pelos interesses do governo que tentou se esconder atrás de organogramas ramificados, mas deixou transparecer suas intenções de cooptação. A maioria destas COLMÉIAS nunca funcionou de fato ou já nem existe mais. Na percepção dos movimentos sociais e entidades de base os espaços de “participação” foram meramente estratégias de barganha e apaziguamento para viabilizar a conflituosa obra da transposição. O fracasso da estratégia das COLMÉIAS fica evidente na agenda do programa de revitalização publicada no site do MMA, que tem uma única reunião de uma COLMÉIA em Minas Gerais agendada.
O governo federal responde à cobrança social de revitalização da Bacia do São Francisco e aos protestos contra a transposição com um Programa de Revitalização de “faz-de-conta”, atrelado ao prioritário projeto de transposição. Está clara a estratégia política de instrumentalizar a proposta de revitalização para viabilizar política e socialmente a polêmica transposição. A priorização da obra da transposição e a estratégia de maquiar para manter o modelo vigente de produção responsável pela degradação fica clara na análise dos orçamentos (vide embaixo, cap. 2.3).
A subordinação do programa de revitalização como viabilização social e política da obra da transposição já se mostra no fato de que o programa é coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Integração Nacional, mas a grande maioria dos recursos (83,1% do orçamento do programa de 2007) está gerenciada pelo Ministério da Integração Nacional, o promotor da transposição. Desta forma se evidencia que a finalidade última do programa não é a recuperação ambiental da Bacia do Rio São Francisco, já que a gestão dos recursos está submetida a um esquema que favorece o jogo de interesses entre promotores da transposição e lideranças políticas locais da própria Bacia, mas uma moeda de troca para garantir a aceitação social e política do projeto da Transposição do Rio São Francisco pelas políticos e a população local.
Chegou-se mesmo a condicionar os dois programas de governo um ao outro e a dizer que sem transposição não haveria revitalização. A própria nomenclatura dos programas foi mudando de acordo com essa estratégia e a transposição passou a ser propagandeada como integração de bacias.
Ademais: a maioria das ações de revitalização está sendo executada por meio da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF), a mesma que ao longo das últimas décadas, cumprindo o papel do Estado indutor do desenvolvimentismo economicista, se destacou como a principal promotora de um modelo de produção degradante que contribuiu essencialmente para a degradação da Bacia.
Hoje, sob égide do Estado mínimo, as tomadas de decisão sobre as ações de revitalização são muito mais de cunho político do que técnico e as políticas se tornam ocasiões para “balcão de negócios”. Os projetos financiados pelo programa de revitalização resultam de demandas induzidas e demandas espontâneas, ambas se prestando a injunções de políticos locais ou nacionais sem nenhuma visão estratégica do conjunto de ações. Neste sentido o programa de revitalização foi criticado por um estudo do Banco Mundial (2005, 67) sobre o projeto da transposição:
"O conceito de revitalização da Bacia do Rio São Francisco precisa ser discutido e claramente definido para que se possa identificar as ações a serem realizadas, baseando-se em informações técnicas e não apenas em demandas dos estados [ou municípios].”
2.3. Orçamento do Programa do Governo
Analisando os investimentos do programa de revitalização em relação ao projeto da transposição do Rio São Francisco observa-se-á claramente quais as reais prioridades do governo federal em relação ao Rio São Francisco. O orçamento 1,27 bilhões destinado à ações de revitalização significa uma parcela pequena comparado com os 6,6 bilhões previstos no PAC para a obra da transposição. E não só isso: até para projetos de irrigação o PAC garante mais investimento do que para o programa de revitalização.
Para 2007 o PAC já tem garantido R$ 493,6 milhões para a obra da transposição e R$ 248,6 milhões para a revitalização. Porém, não se tem clareza sobre quantos dos projetos previstos dentro do programa de revitalização realmente estão sendo executados.
O que faz pensar sobre os problemas administrativos é o fato que anualmente municípios da Bacia atingidos por barragens de hidrelétricas recebem milhões em royalties da CHESF pelo uso da água do Rio para geração de energia. Mas pouco se sabe para onde vai este dinheiro, que também poderia ser atrelado a ações de revitalização do Rio em vez de sumir no ralo dos contas públicas municipais. Há de se preocupar que os recursos do programa de revitalização sumirão da mesma forma se não houver mecanismos efetivos de controle social. Caso contrário pode-se estabelecer uma “indústria da revitalização” nos moldes da “indústria da seca”, que concentra verbas destinadas a programas de emergência na mão de poucas pessoas, que instrumentalizam a implementação de obras de acordo com seus próprios interesses.
2.4. Conclusão
O Rio São Francisco precisa de um programa abrangente de revitalização, que parta de uma visão ecossistêmica dos problemas da Bacia e que ataque de forma igualmente sistemática as principais causas de degradação do rio. As ações pontuais e paliativas promovidas até agora não bastam para atingir as raízes dos problemas.
Além das ações de saneamento básico propostas pelo programa do governo, um projeto de revitalização deve ir além de encarar a poluição direta por emissões urbanas e industriais. Um aspecto essencial é a conservação de lençóis freáticos, nascentes e áreas de recarga, para garantia de armazenamento e fornecimento de água na Bacia em volumes suficientes à reprodução do conjunto da vida, diminuição de enxurradas e maiores vazões de estiagem.
O problema da recuperação hidro-ambiental do Rio São Francisco somente em parte é um problema de engenharia; ele é também em muitos aspectos um problema agrícola e um problema social. Todo esforço de recuperação da Bacia será em vão se o modelo de produção agrícola não for modificado incorporando práticas de conservação de solo e água. Neste sentido, soa mais que plausível, necessária, a proposta dos movimentos sociais de “Moratória para o Cerrado”: “não construir, na área da bacia, nenhuma novo grande projeto, seja de barragem, irrigação, monocultivos, pastagens ou transposição de águas, que implique em desmatamento, erosão de solos e poluição ou perda de águas”.
O Fórum Permanente em Defesa do São Francisco / Bahia, desde seu início, em 1999, defende que este seja o primeiro passo para revitalizar o Rio. Devem ser incluídos aí também os projetos industriais, que tendem a aumentar na Bacia, sejam mínero-siderúrgicos, sejam agroindustriais.
O sucesso do programa de revitalização do Rio São Francisco está igualmente na dependência de uma reformulação nas instituições governamentais que interferem na política do rio. Porque, segundo Coelho (2005), nesta atuação reina uma “caótica barafunda” e um impasse quase total, o que determina não só a paralisação das atividades, como a adoção de medidas que se anulam. No momento o principal desafio é a interferência abusiva e prejudicial do Ministério da Integração Nacional em funções que dizem respeito ao Ministério de Meio Ambiente (Coelho 2005, 142).
À guisa de resumo conclusivo-propositivo, diríamos que revitalizar o Rio São Francisco implica em planejar as ações com base no conhecimento da ecologia e hidrologia do Cerrado e do Semi-árido. A revitalização depende de fatores ecológicos extremamente complexos e interdependentes. A Bacia do Rio São Francisco é um sistema já bastante fragilizado. Diversos fatores que levam à sua degradação ainda têm que ser estudados, antes de interferir ainda mais (sobretudo diante as ameaças e incertezas do aquecimento global). Um programa de revitalização tem que considerar esta complexidade e aprofundar o enfrentamento das causas de degradação. Todo esforço de recuperação da Bacia será em vão se o modelo de produção agrícola não for modificado, incorporando práticas de conservação de solo e água. E se o fantasma da transposição não se dissipar no horizonte da Bacia.
Por fim, os principais atores socais a serem envolvidos na elaboração de um programa de revitalização deveriam ser as comunidades tradicionais de pescadores, quilombolas, índios, fundos de pasto e os ribeirinhos em geral. Pois são eles que ainda preservam um modo de vida de pouco impacto ao ambiente natural da bacia e pode-se aprender muito com eles em relação a preservação do rio. No entanto, os estudos oficiais de ANA (et al. 2004) sequer mencionam estas comunidades. As populações urbanas, crescentemente maioria da Bacia, também precisam de programas específicos, com destaque para a educação ambiental, a fim de envolvê-los efetivamente na redução da degradação e na promoção da revitalização, com mecanismos eficientes de controle social.
A revitalização da Bacia do Rio São Francisco só será verdadeira se o povo ribeirinho, especialmente a população pobre, vítima da injustiça ambiental em que resulta o processo cumulativo de degradação e que se organiza e se mobiliza para enfrentá-la e combatê-la, for efetiva protagonista dela.
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Artigo publicado no CADERNO CEAS 227, Especial Rio São Francisco, Dezembro 2007 Extraído de: http://www.umavidapelavida.com.br/detalhe_especialistas.asp?ID=196