11 de Abril de 2009
Bacia de um dos principais afluentes do São Francisco, o rio Pandeiros, abriga complexo ambiental pouco conhecido, mas de enorme importância estratégica
Islaine F. P. Azevedo,
Yule R. F. Nunes,
Maria das Dores M. Veloso,
Walter V. Neves e
G. W. Fernandes
A rica diversidade da flora e fauna de Minas Gerais é resultado da grande variedade de condicionantes do clima, relevo, recursos hídricos e presença dos biomas Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga. Uma biodiversidade fundamental para o patrimônio natural, o que justifica a necessidade de preservação.
Mas o processo de ocupação de Minas Gerais, por um modelo de desenvolvimento ligado à utilização intensiva e inadequada dos recursos naturais, comprometeu consideravelmente sua biodiversidade. Áreas naturais do estado sofreram profundas alterações em conseqüência das intensas e contínuas ações antrópicas, algumas delas talvez irreversíveis. Apenas 33% da cobertura vegetal nativa do estado estão preservadas, segundo o Instituto Estadual de Florestas (IEF). E grande parte dessa cobertura vegetal está no norte do estado, confinada em unidades de conservação (UCs).
A área de Proteção Ambiental (Apa) do rio Pandeiros, criada pela Lei 11.901 de 01/09/1995, merece destaque pela ocorrência de ambientes estratégicos para a conservação do patrimônio natural. Com 393.060 hectares, essa área de proteção abrange toda a bacia hidrográfica do rio Pandeiros, incluindo os municípios de Januária, Bonito de Minas e Cônego Marinho. É a maior unidade de conservação de uso sustentável do estado e tem como objetivos compatibilizar a conservação da Natureza com o uso sustentável de parte de seus recursos hídricos, além de proteger a diversidade biológica presente em lagoas marginais, córregos, cachoeiras, veredas e, principalmente, no único pântano mineiro. O rio Pandeiros, que integra a bacia do médio São Francisco é considerado um afluente estratégico na margem esquerda desse rio.
A presença de espécies vegetais comuns ao cerrado e à caatinga caracteriza o local como área de transição, com ocorrência de formações e adaptações particulares. Isso significa, tanto importância biológica como área prioritária para pesquisa científica.
O Atlas de conservação da biodiversidade em Minas Gerais, publicado em 2005 pela Fundação Biodiversitas, classifica a Apa do rio Pandeiros como área prioritária para a conservação da biodiversidade. O norte de Minas, no entanto, é provavelmente a região menos estudada do estado, com parcos levantamentos de flora e fauna. O conhecimento do potencial ecológico das espécies vegetais e animais da região auxilia na manutenção da preservação ambiental dessas espécies, reduzindo assim os riscos de extinção regional, em decorrência de práticas antrópicas predatórias.
Refúgio para a Ictiofauna
O pântano do rio Pandeiros tem área alagável que varia de aproximadamente 3 mil ha (estação seca) a 5 mil ha (estação chuvosa) e é responsável por 70% da reprodução e desenvolvimento de peixes do médio São Francisco.
Nos arredores do pântano, encontra-se um complexo de lagoas marginais, interligadas no período das chuvas, utilizadas como criadouros por espécies de peixes de piracema, que percorrem longas distâncias no São Francisco para a reprodução. Entre essas espécies estão o dourado (Salminus franciscanus), piau-verdadeiro (Leporinus elongatus), matrinchã (Brycon lundii), surubim (Pseudoplatystoma corruscans) e pacu (Myleus micans). O pântano também serve de abrigo e fonte de recursos alimentares para muitas aves, caso do martim-pescador (Ceryle torquatus), pato-do-mato (Cairina moschata), mergulhão- pequeno (Tachybaptus dominicus) e garçabranca- grande (Casmerodius albus).
A importância desse local fez com que, nos limites da Apa, uma área de 6 mil ha se tornasse Refúgio de Vida Silvestre (Revise), como uma categoria de unidade de conservação de proteção integral de ambientes naturais, onde se asseguram condições para a existência ou reprodução de espécies da flora e da fauna residente ou migratória. O refúgio abriga ainda grande parte das lagoas marginais, cachoeiras, o pântano e a foz do rio Pandeiros, ambientes críticos para a manutenção da ictiofauna do rio São Francisco. Assim, a conservação do rio Pandeiros é fundamental para a revitalização desse rio.
O pântano do rio Pandeiros é considerado ambiente único no estado, e a proteção assegurada pelo refúgio não é suficiente para a sua preservação. Muitos impactos ambientais causados em toda a extensão da Apa estão refletidos no pântano, entre eles o assoreamento, principalmente devido à degradação das veredas e da vegetação ciliar. Esse é um dos mais graves danos ambientais.
Oásis no Polígono das Secas
As águas do Pandeiros e seus afluentes, assim como muitos outros rios do cerrado, são sustentadas principalmente por inúmeras e extensas veredas que representam, na realidade, um oásis em meio à paisagem árida do norte de Minas Gerais, sob a forma de refúgios e corredores naturais da fauna e da flora. As veredas da Apa do Pandeiros são classificadas pela presença de uma palmeira, mais conhecida como buriti (Mauritia flexuosa), e, na maioria das vezes, está associada a espécies arbóreas de mata ciliar e do cerrado, dando a impressão de floresta exuberante. As veredas são legalmente protegidas como Áreas de Proteção Permanente (APP), numa tentativa de conservar um ecossistema frágil e suscetível à degradação.
Em contraste com a rica biodiversidade do local, a população carente do semi-árido mineiro vive em pequenas comunidades rurais, utilizando os recursos naturais da região como forma de subsistência, mas de maneira indevida e não sustentável. A maior parte da degradação ambiental da Apa do rio Pandeiros tem origem em bases sociais. Para os moradores, a extração de lenha do cerrado e transformação das áreas alagadas das veredas em terras de cultura agrícola, com freqüente uso do fogo e de sistemas de drenagem errôneos, é uma estratégia de sobrevivência.
A importância ecológica e a vulnerabilidade da diversidade biológica dos ecossistemas da Apa do rio Pandeiros despertaram as atenções de um grupo de pesquisadores. A intenção é realizar trabalhos científicos no local para desenvolvimento de estratégias de conservação da biodiversidade. Neste sentido, foi montada uma sub-rede de pesquisa “Ecologia, Conservação e Uso Sustentado em Áreas da Transição entre os Biomas da Caatinga e do Cerrado no Médio São Francisco”, englobando grupos de pesquisa da Universidade Estadual dual de Montes Claros (Unimontes), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal de Viçosa (UFV). Esta sub-rede de pesquisa integra o Programa de Revitalização do rio São Francisco e é formada por cinco projetos de pesquisa e um projeto de capacitação, todos na linha de investigação em Conservação e Manejo de Recursos Naturais.
Os projetos têm prazo de dois anos de execução e reúnem cerca de 20 pesquisadores, além de 30 alunos da graduação e pós-graduação das três universidades.
Entre os projetos, a pesquisa na área de fitoindicadores ecológicos para recuperação de matas ciliares no médio São Francisco busca informações sobre as vegetações ciliares do rio Pandeiros, com pesquisa envolvendo as características florísticas, estrutura da comunidade vegetacional e estratégias de reprodução de espécies vegetais. Nessa abordagem, os locais selecionados para amostragem da vegetação ciliar incluem diversas formações vegetacionais como cerrado (sentido restrito), além de veredas e floresta estacional decidual (mata seca) e mata ciliar.
Ambiente Complexo
Os resultados preliminares de um ano de execução do projeto revelam uma vegetação exuberante e intrigante. As formações vegetais que margeiam o curso do rio Pandeiros exibem uma diversidade marcante de ecossistemas provenientes do efeito transicional entre os biomas do cerrado e caatinga e formam uma junção peculiar de mata ciliar, mata seca, cerrado e veredas.
Entre a vegetação encontrada, as matas ciliares, definidas como vegetação florestal associada a cursos d’água e a nascentes, têm uma diversidade de funções ambientais e destacam-se pela rica diversidade botânica e proteção que oferecem à fauna silvestre e aquática. Mas mesmo protegida por lei, a mata ciliar do rio Pandeiros sofre progressivas alterações tornando-se descontinua e, muitas vezes, completamente ausente. As espécies características da mata ciliar ocorrentes nas áreas amostradas foram jatobá (Hymenaea eriogyne), pau-d’óleo (Copaifera langsdorffii), ingá (Inga vera), pau-pombo (Tapirira guianensis) e bosta-de-cabra (Hirtella gracilipes).
As florestas estacionais deciduais, popularmente conhecidas como matas secas, apresentam como principal característica a perda de pelo menos 70% das folhas na estação seca. São formações florestais que ocorrem em afloramentos de calcário no cerrado e não estão associadas aos cursos d’água. Mas muitos fragmentos de mata seca estão presentes às margens do rio Pandeiros e apresentam como espécies vegetais mais representativas o angico (Anadenanthera colubrina), mamoninha (Dilodendron bipinnatum), aroeira (Myracrodruon urundeuva) e gonçalo-alves (Astronium fraxinifolium).
O cerrado é o tipo fisionômico, ou seja, a formação vegetacional dominante da Apa do rio Pandeiros e está intimamente associado à vegetação ciliar desse rio. São encontradas, freqüentemente próximas às margens do rio Pandeiros, as espécies arbóreas do cerrado conhecidas como pimenta-demacaco (Xylopia aromatica), lixeira (Curatella americana), cagaita (Eugenia dysenterica) e tingui (Magonia pubescens).
As veredas ocorrem em áreas úmidas do cerrado, locais onde o afloramento do lençol freático possibilita encharcamento do solo. Essas formações são caracterizadas pela presença da palmeira buriti. Em vários trechos do rio Pandeiros, registra-se a presença de extensas veredas associadas à vegetação ciliar, que atuam na manutenção dos seus afluentes e funcionam como refúgio para a fauna durante a estação seca.
A obtenção de informações e subsídios para conhecimento da biodiversidade numa área transicional, entre os biomas Cerrado e Caatinga, seu potencial biológico, e novas possibilidades de desenvolvimento de tecnologias de recuperação de áreas degradadas da vegetação ciliar da região do médio São Francisco é o foco das pesquisas em curso.
O Programa de Revitalização do rio São Francisco contempla grande conjunto de iniciativas para permitir o uso sustentável dos recursos naturais em toda a bacia. Para que o programa se sustente, no entanto, é necessário aumentar a base de conhecimento de todos os aspectos referentes à manutenção das funções dos ecossistemas que compõem a bacia. Dessa forma, os projetos, o conhecimento gerado e as ações previstas na sub-rede deverão encaminhar ações reais de desenvolvimento sustentado que promovam a melhoria da qualidade de vida das populações locais e assegurem a biodiversidade de uma área ainda desconhecida da ciência.
PARA CONHECER MAIS
Biodiversidade em Minas Gerais: um atlas para sua conservação. G. M. Drummond, C. S. Martins, A. B. M. Machado, F. A. Sebaio e Y. Antonini. Fundação Biodiversitas, 2005.
Vereda Berço das Águas. R. S. Boaventura, C. J. Soares, F. M. Vasconcelos e J. P. C. Castro. Ecodinâmica, 2007.
Franciely Pinheiro Azevedo, mestranda em ciências biológicas da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), é bolsista do CNPq.
Yule Roberta Ferreira Nunes, professora de ecologia da Unimontes, desenvolve pesquisas na área de ecologia de ecossistemas e recuperação de áreas degradadas.
Maria das Dores Magalhães Veloso, professora de ecologia da Unimontes, é doutoranda em engenharia florestal na Universidade Federal de Lavras.
Walter Viana Neves, técnico ambiental do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais, atua na área de gerenciamento de unidades de conservação e de prevenção e combate a incêndios florestais.
G. Wilson Fernandes, professor de ecologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desenvolve pesquisas na área de ecologia evolutiva de insetos herbívoros e conservação da biodiversidade tropical.
Fonte: Scientific American Brasil – http://www2.uol.com.br/sciam/