Para nossas comunidades, o Território possui um significado completamente diferente da que ele apresenta para a cultura ocidental hegemônica. Não se trata apenas da moradia, mas sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a transmissão de nossa história, nossos cantos e danças, forma de plantar e colher, de geração em geração, possibilitando a preservação da nossa cultura, dos valores e do modo peculiar de nossas vidas enquanto comunidade étnica.
Sabemos que há mais de três séculos, as comunidades quilombolas são vítimas de violentas campanhas do Estado Brasileiro, que objetiva espoliar os nossos territórios, destinando vastas extensões das terras ao agronegócio, por meio de chacinas, assassinatos e despejos violentos, um verdadeiro genocídio!
Nós, das diversas comunidades quilombolas signatárias de todo Brasil, vimos por meio deste, denunciar à sociedade brasileira e ao mundo a forma brutal como o Estado Brasileiro tem nos tratado, onde, em pleno século XXI, o governo brasileiro reedita as medidas sociopolíticas que patrocinam a destruição sistemática dos nossos modos de vida, através de supressão física e opressão cultural.
O Governo Lula chegou ao seu último ano de mandato emitindo apenas 11 títulos às comunidades quilombolas, com a promessa de que seriam 57 comunidades em 2010.[1] Até dezembro de 2011, somente 3 das 44 áreas decretadas para desapropriaçãohaviam sido tituladas pelo governo federal. As comunidades beneficiadas foram Família Silva (RS), Colônia São Miguel (MS) e Preto Forro (RJ). A primeira teve suas terras parcialmente tituladas em 2009 e as outras duas em 2011.[2]
No novo PPA (2012-2015), já sob o governo Dilma, as comunidades quilombolas não mais contam com um programa específico; na transição para o novo PPA não mais existe o programa Brasil Quilombola. O novo programa, denominado Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, e que tem na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial-SEPPIR o órgão gestor responsável tem para o ano de 2012, um orçamento no valor de R$ 73,125 milhões, e para os três anos seguintes, mais R$ 239,498 milhões, totalizando no período de 2012-2015 cerca de R$ 312,623 milhões. Considerando-se os números apresentados, um orçamento ainda menor que o anterior (2008-2011).[3]
Além dos números apresentados, a política adotada pelo Estado Brasileiro em relação às nossas comunidades é pautada pela barbárie, operada através do uso abusivo da máquina estatal, leis, bens públicos, força repressiva e expropriação dos recursos que seriam de toda a coletividade. Tecnologia há mais de três séculos solidamente instalada e tendo como sua principal base de sustentação o controle do acesso à justiça.[4]
Nas últimas décadas, como forma de enfrentar a organização política da comunidade Rio dos Macacos e da solidariedades de muitos grupos da Bahia e do Brasil, a Marinha protagonizou inúmeras ações violentas a exemplo do assédio diário à comunidade com dezenas de fuzileiros armados; invasão de domicílios atentando contra os direitos das mulheres; uso ostensivo de armamento exclusivo das forças armadas criando verdadeiros traumas em crianças, adolescente e idosos, que tiveram casas invadidas e armas apontadas para as suas cabeças; em 04 de março de 2012, uma semana após realização de audiência com a presença da Secretaria Geral da Presidência da República, o quilombola Orlando sofreu atentado contra sua vida, quando um fuzileiro naval disparou tiro contra o mesmo, com o intuito de matá-lo, quando este chegava em Rio dos Macacos.
No território quilombola da Ilha da Marambaia, no Rio de Janeiro, encontramos um verdadeiro Estado de Sítio. A administração militar da ilha instaurou, a partir de 1971, um regime de proibições que decorrem da sobreposição de algumas figuras legais, cuja aplicação local é ambígua e até mesmo distorcida: área de interesse militar- freqüentemente confundida com Área de Segurança Nacional; Área de Preservação Ambiental (APA) – pensada como área de uso exclusivo para pesquisa científica (Reserva); e área de patrimônio da União – tomada como Patrimônio Histórico Nacional. Lançando mão da sobreposição e confusão dessas categorias, os administradores da ilha criam um verdadeiro território de exceção, que busca dar aparência legal e justificação legítima à estrutura de precariedades criadas em torno da posse territorial que quase 300 famílias quilombolas mantêm na ilha há três gerações.[5]
No norte de Minas Gerais, a Comunidade Quilombola de Brejo dos Criolos enfrenta latifundiários violentos todos os dias. Reconhecida desde 2004 como Comunidade Quilombola, depois de 6 anos de espera. Em razão desta lentidão, foram realizadas desde 2005 até os tempos atuais seis re-ocupações de terras, sendo que em três, o conflito intermediado pela Procuradoria da Republica em Minas Gerais, propiciou a permanência nas áreas ocupadas. E em uma delas, dado que foi solicitada ao juiz da comarca a manutenção da posse da terra retomada, cuja representação foi alicerçada na afirmação constitucional de que estando “ocupando as suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir- -lhes os títulos respectivos.[6] Para a emissão do decreto de desapropriação ( o único emitido pelo Governo Federal em 2011!), centenas de quilombolas acamparam e se acorrentaram diante do Palácio do Planalto em setembro de 2011. Registra-se ainda a violência permanente sofrida pelos Quilombolas Theodoro e Ventura, na serra do Salitre, Pato de Minas, com lideranças ameaçadas de morte.
No Maranhão, a Anistia Internacional, diante da violência contra os quilombolas de Salgado, Território Aldeia Velha,Pirapemas, lançou Ação Urgente em defesa da mesma em dezembro de 2011.Como em outras comunidades afrodescendentes no Maranhão, a comunidade de Salgado tem sofrido intimidação e ameaças persistentes, por poderosos proprietários de terras locais, em consequência de sua longa luta para ter as suas terras tituladas. Em 3 de dezembro de 2011, membros da comunidade descobriram que 18 animais pertencentes à liderança quilombola Zé da Cruz foram envenenados e mortos, resultando em grande perda para sua família. No final de agosto, um pistoleiro local disparou na direção da casa de José da Cruz, matando um animal. Em 14 de Dezembro, José da Cruz e outros membros da comunidade encontraram um recipiente de herbicida no poço usado pelas famílias de Salgado. Em 22 de dezembro, um pistoleiro havia sido contratado para matar Zé da Cruz, enquanto dois homens armados foram vistos patrulhando os arredores da comunidade. O processo desapropriatório tramita no INCRA há 12 anos.
No Rio Grande do Sul, as famílias do Quilombo do Morro Alto, desde 2004, esperam que o Incra complete a regularização e devolução do território aos Quilombolas. Em 2011, quando deveriam ocorrer as notificações dos ocupantes não quilombolas, ligados ao agronegócio, para indenização e saída da área dos mesmos, ilegalmente o processo foi remetido ao presidente nacional do Incra, sem nenhuma consulta às famílias. Em razão da lentidão do governo federal, a violência no quilombo somente aumentou. Grileiros que invadem o território quilombola a mando de grandes proprietários têm provocado conflitos físicos com membros da comunidade e no dia 12 de outubro de 2011, o presidente da Associação dos Moradores do Quilombo de Morro Alto, Wilson Marques foi agredido e recebeu um tiro que pegou de raspão em sua cabeça. Imaginando que o quilombola estivesse morto, os agressores fugiram.
Nos meandros deste sistema de concentração de terra, a violência empregada pelo Estado brasileiro tornou-se um instrumento tão efetivo de controle e coerção, quanto à única forma de comunicação entre as estruturas de governo e as nossas comunidades. A força bruta e os constrangimentos físicos constituíram-se numa forma de relação legitimada, de maneira explícita, pelos aparatos de poder.
Evidente, pois, que a ação oficial, nesses casos, padece de uma espécie de racismo institucional, embutido nas práticas de seus operadores. O resultado é uma tomada de partido de parte dos técnicos pela lógica dos proprietários de terra ou de grandes empreendimentos.[7]
Nós, Comunidades Quilombolas signatárias, não aceitamos esse estado de coisas, que mata e violenta nosso povo!!
Desta forma, exigimos, de acordo com o Artigo 68 ADCT/CF, Convenção 169 da OIT, Decreto Federal 4887/2003:
Desistência dos 3 processos judiciais movidos pela União/Marinha contra a Comunidade Quilombola de Rio dos Macacos;
Finalização do RTID de Rio do Macacos com a o prazo de 3 meses, a contar da data desta Carta e imediata publicação do mesmo no Dário Oficial da União;
Que o INCRA e a Fundação Cultural Palmares cumpram com seu dever de defesa da comunidade quilombola de Rio dos Macacos em conflito com a Marinha em todas as esferas;
Elaboração dos 34 RTID’s das comunidades quilombolas do Maranhão no ano de 2012, conforme acordo estabelecido entre o Moquibom-Maranhão e INCRA Nacional durante o Acampamento Negro Flaviano, em 2011;
Conclusão dos processos de regularização fundiária, com a notificação dos ocupantes não quilombolas de Morro Alto/RS, imediatamente e conclusão do processo de regularização com a edição do Decreto de desapropriação por interesse social;
Titulação dos territórios quilombolas da Pedra do Sal e Marambaia;
Proteção às lideranças quilombolas ameaçadas de morte em todo o Brasil, por meio dos Programas Estaduais e Federal de Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos;
Presença da Comissão Externa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, constituída em 2011, cujo objetivo é avaliar as violações dos direitos humanos nas comunidades quilombolas, prioritariamente na Bahia e, seguidamente, no Maranhão, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás, Rio de Janeiro;
Pela não aprovação da PEC 215, a tramitar no Congresso Nacional, que visa tornar de competência exclusiva do Congresso nacional a demarcação de terras de índio e de quilombos;
Pelo indeferimento da ADIN 3239, do Democratas-DEM, que visa declarar inconstitucional o decreto federal 4887/2003;
Pela não aprovação do Projeto de Lei nº 44/2007 de autoria do deputado federal Valdir Colato (PMDB-SC), que visa sustar a aplicação do decreto federal 4.887/2003;
Pela agilidade do processo de certificação das Comunidades Quilombolas pela Fundação Cultural Palmares;
Reiteraramos a Nota Pública editada pela MALUNGU- Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará, no que se refere à proposta do Governo Federal de Regulamentação do Direito da Consulta Prévia estabelecido pela Convenção 169-OIT, visto que o formato de discussão proposta pelo Governo possui caráter excludente em relação à grande maioria das comunidades quilombolas e indígenas do País;
Assinam
Comunidade Quilombola Rio dos Macacos-BA
Comunidade Quilombola Aldeia Velha-MA
Comunidade Quilombola do Charco-MA
Comunidade Quilombola de Cruzeiro-MA
Comunidade Quilombola de Pericumã-MA
Comunidade Quilombola de São Caetano-MA
Comunidade Quilombola de Bom Jesus-MA
Comunidade Quilombola de Carro Quebrado-MA
Comunidade Quilombola de Açude-Ma
Comunidade Quilombola de Brasília-Ma
Comunidade Quilombola de Ponta-Ma
Comunidade Quilombola de Nazaré-MA
Comunidade Quilombola de Mondego-Ma
Comunidade Quilombola de Cedro-Ma
Comunidade Quilombola de Lacral/Espírito Santo-MA
Comunidade Quilombola de Tijuca-Ma
Comunidade Quilombola de Achuí-MA
Comunidade Quilombola de Engole-MA
Comunidade Quilombola de Rio Grande-Ma
Comunidade Quilombola de Ramal de Quindiua-MA
Comunidade Quilombola de Mafra-Ma
Comunidade Quilombola de Bitiua-MA
Comunidade Quilombola de Mutaca-Ma
Comunidade Quilombola de Maiabi-Ma
Comunidade Quilombola de Boa Vista-Ma
Comunidade Quilombola de Rosário dos Pretos-MA
Comunidade Quilombola de Mariano dos Campos-Ma
Comunidade Quilombola de Conceição-Ma
Comunidade Quilombola de Aliança/Santa Joana-Ma
Comunidade Quilombola de Sumaúma-MA
Comunidade Quilombola dos Silva-RS
Comunidade Quilombola do Fidelix-RS
Comunidade Quilombola do Morro Alto-RS
Comunidade Quilombola Candiota-RS
Comunidade Quilombola Palmas-RS
Comunidade Quilombola Picada das Vassouras-RS
Comunidade Quilombola Várzea dos Baianos-RS
Comunidade Quilombola de Solidão-RS
Comunidade Quilombola Várzea do Candiota-RS
Comunidade Quilombola Teodoro/Ventura-MG
Comunidade Quilombola da Pedra do Sal-RJ
Subscrevem:
Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas
Comissão Pastoral da Terra-MA
Movimento Quilombola do Maranhão-MOQUIBOM
GT Nacional MNU de Luta, Autônomo e Independente
Casa do Boneco – Itacaré-BA
Campanha Somos Tod@s Quilombo Rio dos Macacos
CSP-CONLUTAS
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[1] Conforme destaca o INESC, o Plano Plurianual (PPA) 2008-2011 previu como meta a titulação de 264 territórios quilombola, dos quais 198 somente entre 2008-2010. Passados três anos de implementação da Agenda Social Quilombola (2008-2010) foram emitidos apenas 36 títulos de terra, número bastante aquém da meta estabelecida em 2007.
[2] Terras Quilombolas. Balanço 2011. Comissão Pró-Índio de São Paulo, disponível em http://www.cpisp.org.br/email/balanco11/img/Balan%C3%A7oTerrasQuilombolas2011.pdf
[3] Terras e territórios quilombolas no PPA 2012-2015
[4] Leite, Ilka Boaventura. Humanidades Insurgentes:Conflitos e criminalização dos quilombos. In. Cadernos de debates Nova Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos /Alfredo Wagner Berno de Almeida (Orgs)... [et al]. – Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia / UEA Edições, 2010.
[5] Arruti, José Maurício. A NEGAÇÃO DO TERRITÓRIO: estratégias e táticas do processo de expropriação na Marambaia. In. Cadernos de debates Nova Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos /Alfredo Wagner Berno de Almeida (Orgs)... [et al]. – Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia / UEA Edições, 2010.
[6] Costa, João Batista de Almeida e Oliveira, Cláudia Luz de. NEGROS DO NORTE DE MINAS: DIREITOS, CONFLITOS, EXCLUSÃO E CRIMINALIZAÇÃO DE QUILOMBOSIn. Cadernos de debates Nova Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos /Alfredo Wagner Berno de Almeida (Orgs)... [et al]. – Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia / UEA Edições, 2010.
[7] Andrade, Maristela de Paula. RACISMO, ETNOCÍDIO E LIMPEZA ÉTNICA –AÇÃO OFICIAL JUNTO A QUILOMBOLAS NO BRASIL