segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Vida Simples ao Extremo!


Durante mais de três meses minha vida se limitou a remar, acampar, fazer comida, escrever e pensar... observei a Natureza ao meu redor, não como um reles expectador, mas como outra das tantas vidas que pulsavam naquele rio de tão diversificadas feições. Estava lá, limitado pelas margens e barrancos, conduzido pelas águas assim como os animais que o habitam há tantos séculos... hoje nem tantos e nem tão diversificados como no passado, quando o rio era selvagem e os povos indígenas não o molestavam com o lixo, as barragens, a pesca predatória, as queimadas, o desmatamento, o esgoto e os produtos químicos jogados em suas águas.


Meditei muito a respeito do supérfluo que nos pressiona ao consumismo e nos encaminha para um futuro assustador, enquanto o mundo discute suas vaidades em não ceder para não parecer fragilizado diante de seus vizinhos dessa aldeia global em que se transformou agora. Não entendi muito bem por que parece tão difícil para a maioria dos homens o que é tão simples para mim, como a vida no rio...


Acordava cedo, à primeira luz do dia ou ao cantar dos pássaros no alvorecer. Em poucos minutos já estava de pé, ajeitando as tralhas do acampamento na canoa, fazendo minha primeira refeição, singela e agradável, sob árvores frondosas, ou diante de um dos incansáveis espetáculos da Natureza, tingindo de cores o céu e as águas...


Logo, a canoa deslizava suavemente pelo rio, abrindo pequenas ondas ao seu redor, quebrando o espelho e perseguindo o Norte ou o Leste, não importava o destino, pois o único caminho que eu tinha me levava ao mar, distante e misterioso como todo meu percurso. Meus olhos registravam cenários efêmeros, que logo se dissipavam, dando lugar a outras pinturas que minha câmera se recusava a preservar. Às vezes eu nem tentava fotografar ou filmar, extasiado pela beleza e encantado pela sonoridade dos cantos dos pássaros...


O ritmo constante das remadas agia como um bálsamo ou um alucinógeno, levando-me a pensares não imaginados, conduzindo minha mente para além da mediocridade humana... em nenhum momento pareceu-me monótona a vida no rio; nada se repetia, ainda que as idéias fossem as mesmas, havia sempre uma transformação que conduzia a novas conclusões.


Nunca almoçava; não havia tempo para interromper a "caminhada", pois "navegar era preciso" e "chegar a algum lugar no mapa" significava cumprir a missão daquele dia. Bebia muita água, mais de quatro litros por dia; comia castanhas e granola, às vezes um doce, e isso me bastava. À tardinha, quando o sol se aproximava do horizonte, era hora de buscar abrigo: uma pequena praia ou um barranco protegido sempre estavam a me esperar e para lá me dirigia.


Sempre sabia que aquele era o lugar escolhido, pois a canoa se dirigia a ele quase espontaneamente; eu mal conduzia o barco e ele parava no lugar apropriado. É curioso como a Natureza provê tudo o que precisamos para sobreviver em segurança. Muitos me disseram: "vai ser roubado!", ou "vai naufragar", ou ainda "cuidado com os bandidos!". Que bandidos?


Montava meu acampamento sem pressa, pois o dia é longo e o tempo passa devagarinho para quem não está na correria das cidades... esse foi o mais longo ano de minha vida... e o mais expressivo, mais belo, mais gratificante, mais produtivo em todos os aspectos. O fogareiro fazia uma comida simples e gostosa, com alguns condimentos que levei... comia devagar, saboreando cada porção de alimento, imaginando que seus nutrientes me fariam recuperar as energias perdidas nas remadas. Bebia um refresco, ou apenas água...


Antes de me recolher lavava as roupas e os materiais de cozinha, e isso também nunca me incomodou. Um pequeno aparelho enviava um sinal para meus amigos e a família, confortando-os com a mensagem de que eu estava bem. Revisava as fotos do dia, as filmagens, olhava os mapas e me situava no globo dos homens, que pouco signficava para mim. Antes de dormir escrevia minhas memórias, meu essencial "diário de bordo".


Pela manhã o ritual era mais simples: desmontar a barraca, colocar a canoa na água, tomar um leite com "ovomaltoddy" ou granola, desfazer as marcas que deixara de minha presença nas areias da praia ou nas folhas do barranco, e seguir viagem novamente. Ah... estava me esquecendo de minhas necessidades fisiológicas! Um pequeno buraco na terra, longe da água, umas folhas, sabão antissético e um banho de rio; escovar os dentes e... pronto!


Assim foi minha vida nesses 99 dias que se passaram desde que saí de São Roque de Minas, exceto os três meses que corri atrás de patrocínio inutilmente... se quero viver assim? não sei... talvez meu espírito inconstante busque novos desafios, novas aventuras, novas experiências antes que eu me acomode em um pequeno esconderijo no meio do mato, no alto da montanha, na escuridão das matas, em algum lugar distante e desabitado, onde possa terminar meus dias... talvez eu não possa escolher o meu destino... mas vocês sabem o que eu quero nesse final e, quem sabe, se compadeçam de mim e deixem-me partir em paz...

sábado, 26 de dezembro de 2009

Ponte sobre o rio São Francisco, entre Petrolina e Juazeiro

Foto de Avelar Amador, um grande amigo que encontrei em Petrolina, e que me deu apoio desde Pernambuco até à chegada na foz do São Francisco, em Piaçabuçu!

Frustrações e o futuro...


Entre tantas alegrias por realizar meu grande projeto, é certo que ficaram algumas frustrações, decepções e tristezas por não ser compreendido muitas vezes... isso é natural; afinal, um ano dedicado a um projeto não é pouco! E o que interessa ao povo é mesmo aquele "axé" das músicas "bregas", ou o brilho opaco das celebridades fabricadas pela equipe global, ou ainda a trivialidade cotidiana de permanecer estável e seguro na sua própria zona de conforto...


Frustração de não ter visitado o Parque Nacional de Peruaçu, por exemplo. A Sociedade Brasileira de Espeleologia, à qual estive filiado por tantos anos e de cujos eventos participei tantas vezes, não me deu nenhum apoio, negou-me até uma resposta ao meu pedido de incluir minha expedição em seu calendário! Deixei de ir ao parque... uma pena, já que ele é desconhecido da maioria dos brasileiros e até mesmo dos amantes das cavernas, como eu. Nem mesmo posso citá-lo em meu livro...


Decepção por não receber um único patrocínio de nenhuma dessas grandes empresas que alardeiam seu compromisso com o meio ambiente, mas ignoram um projeto de tamanha expressividade e envergadura, em defesa de nosso maior patrimônio hídrico nacional. Muitas sequer responderam ao meu pedido de patrocínio; outras apenas declinaram alegando não se adequar o projeto às suas linhas de atuação. Isso desnuda suas verdadeiras intenções de transformar em lucro até suas atividades preservacionistas; se não houver incentivo fiscal, não há patrocínio! Ou seja, mesmo quando apóiam alguma iniciativa em favor da Natureza, quem paga a conta é o governo, com sua renúncia fiscal, ou seja, "nós pagamos!".


Tristeza por ver que nossas autoridades, em todas as esferas da administração pública, estão completamente despreparadas e equivocadas ao lidar com as questões do meio ambiente. Não existe nenhum projeto de revitalização, apesar das propagandas governamentais! Tristeza também por perceber que aqueles que me deram a mão em situações difíceis, muitas vezes desapareceram assim que eu parti para outros estados ou municípios que não os seus.


Quem apóia o faz sem interesses pessoais... mas isso quase não existe! O interesse está sempre acima da solidariedade! E isso é difícil de aceitar para quem está sozinho em um rio extenso e desconhecido, como o São Francisco... desconhecido sim, não por mim, mas pela sua população inteira! Cada lugar que visitei, em cada entrevista que dei, as pessoas me perguntavam, não como estava o rio em toda a sua extensão, mas como seu lugarejo cuidava dele, ou melhor, "como eu sou percebido por vocês?". Um rio não é um mosaico de micro-naturezas que não se relacionam; é um ecossistema complexo e integrado onde as ações humanas causam efeitos cumulativos em tudo o que vem depois.


Esse imenso e fantástico rio continua órfão de seus próprios hóspedes e habitantes!


Mas minhas frustrações, tristezas e decepções não diminuem em nada  os resultados que alcancei... pelo contrário, a despeito de tamanho descaso e desconsideração, consegui atingir os meus propósitos! E isso hoje me basta, por enquanto; pois uma nova batalha tenho à minha frente, que é a de transformar todo esse material coletado em um documento definitivo!


E ainda tenho alguns poucos grandes amigos que me acolheram, me deram as mãos, ativaram sua rede de contatos e permitiram que minha aventura se transformasse na mais importante experiência de minha vida! A todos eles, a minha eterna gratidão!


Publicarei brevemente uma postagem exclusivamente voltada a destacar essas pessoas!

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Piaçabuçu - Alagoas: foz do rio São Francisco

Missão Cumprida!
A sensação de terminar um projeto tão longo, com tantas e diferentes dificuldades, sem patrocínio e apoio oficial de nenhuma organização, desconhecido pela grande mídia, é indescritível! Consegui vencer por meu próprio mérito e pelo apoio conquistado pelo caminho...
Os três últimos dias foram particularmente difíceis... depois que deixei aquela linda praia de Gararu segui em direção a Porto Real do Colégio e Propriá. Saí de madrugada, ainda noite, para evitar os fortes ventos e a agitação do rio, cada dia mais intensos.
O rio estava plácido, dormindo, como diz a lenda, e o barco deslizava rápido por aquele lago noturno. Logo passei por Traipu... fiz umas fotos sem graça e segui adiante. O que mudou muito na paisagem, desde Xingó, é que agora as ilhas eram pequnas, baixas e cobertas por uma densa vegetação aquática, arbustos verdes...
O rio voltou a ser largo, mas a água continuava límpida e verde esmeralda. No entanto, essa vegetação aquática, muitas vezes submersa e formada por algas longas, quando exposta ao sol apresenta cheiro desagradável.
Quando me aproximei de Porto Real do Colégio ouvi fogos e muita música, embarcações com grandes velas coloridas e "gaiolas" de todos os tamanhos. O barco da "família real" já havia passado por mim e quase me afundara na noite anterior. Por isso, fiquei atento, tentando evitar as fortes ondas que eles fazem ao passar. Havia uma grande estátua no meio do rio e parei de remar para fotografá-la; isso me custou caro, pois as ondas eram fortes, e tive que fazer manobras rápidas para evitar ser apanhado por elas...
Não consegui parar na cidade, nem atravessar até Propriá, porque a algazarra era demais para meus hábitos solitários e o rio estava violento. Pouco antes da grande ponte da BR 101 parei sob umas árvores para descansar. Amarrei o barco como pude e fiquei apreciando o vai-e-vem de barcos, alguns rápidos e movidos a vela, outros lentos, com motor de rabeta, rangendo e lutando contra a correnteza e as ondas.
Fiquei algumas horas parado, analisando as alternativas: por baixo da ponte, a densa vegetação e inúmeras ilhas não me permitiam compreender o caminho; pensei em passar a noite ali, pois o barco estava estabilizado e era um local tranquilo e protegido.
Porém, na ânsia de prosseguir e chegar o mais breve possível até o final, decidi arriscar a sorte e prosseguir. Eram 12 horas. Uma hora e meia depois, lutando contra as águas raivosas do rio, sendo jogado ora para um lado, ora para outro, fazendo manobras bruscas para evitar que o barco girasse sobre si mesmo e eu perdesse o controle, usando todas as minhas forças inutilmente, eu andara menos de dois quilômetros e apenas passara por baixo da ponte... os sons da cidade ainda eram fortes.
Tentei encostar em um barranco e acampar, mesmo em um pasto, mas a canoa batia na lama do barranco sem vegetação e as formigas me devoravam enquanto eu tentava encontrar um meio de retirar as tralhas. Depois de algumas tentativas frustradas, desisti e voltei para a tormenta. Lembrava-me do filme "Mar em Fúria"... esse era o meu "rio em fúria", mantidas as proporções... meu barquinho, uma "casca de noz", era jogado sem piedade!
Progredia de forma insignificante, mas precisava encontrar algum lugar protegido no meio daquela barreira de terra destruída. Uns 200 metros adiante vi uma pequena moita de calumbi e capim, e me apeguei a essa possibilidade. Remava com todas as minhas forças e, alguns minutos depois, joguei o barco de lado, forçando-o contra o capim e lá me refugiei, apesar dos espinhos e insetos.
Era evidente a ação protetora daquela simples vegetação para o barranco! As ondas e a correnteza eram domados por uma pequena moita de arbustos... mas os estúpidos fazendeiros continuam a devastar até o último pé de capim, mesmo que o rio venha a cobrar o seu tributo, levando as terras para dentro de seu leito e retirando o medíocre ganho de espaço conquistado pela ganância desses homens.
Amarrei precariamente o barco e me ajeitei como pude no pequeno espaço interno. Sabia que a espera seria longa e cansativa, pois o rio só adormece depois da meia-noite. E ainda teria que esperar pela luz da lua, cada vez mais tardia... já era quarto-minguante e sua tênue luminosidade ainda permitia navegar.
Saí de lá às duas horas da madrugada, sem dormir, sem comer e picado pelos insetos, com o corpo todo dolorido da incômoda posição. O rio voltara a ser calmo e meu barco parecia um caiaque, deslizando célere pela lagoa encantada em que se transfomara o meu "Velho Chico".
Remei intensamente, cada vez mais motivado pela possibilidade de encerrar a expedição. Mas o céu se cobria de pesadas nuvens e a visão do rio era precária. Felizmente, não havia nenhuma outra embarcação com a qual eu pudesse me chocar inadvertidamente.  Éramos apena eu, quebrando a magia do lago e o silêncio do caminho, com minhas remadas compassadas e firmes...
De repente, começou a chover. Olhei para o céu e era todo nuvens, densas e carregadas. Tive receio de uma tempestade: vento e chuva seriam os ingredientes ideais de uma tragédia, pois ali, a mata era um só manto negro nas margens do rio...
Felizmente, a chuva cessou tão rápido quanto viera, e eu continuava remando com todas as forças. Pela manhã, ao nascer do sol, eu já estava em Penedo, uma cidade curiosa, protegida por uma espécie de enseada longa e curva, que me obrigara a atravessar para a margem direita, contornar o "istmo" e retornar à margem esquerda. A escuridão fazia tudo parecer misterioso... via imagens e as interpretava conforme meu sentimento, às vezes imaginando cenas inexistentes, outras valorizando detalhes insignificantes...
Havia algum movimento de barcos de pescadores e uma balsa, que levava carros, pessoas e mercadorias para o outro lado, onde também havia um povoado. Luzes coloridas, piscando intermitentemente, e música indicavam o final de uma festa, talvez a mesma que agitava Porto Real e Propriá...
Pensei em talvez encontrar algum bar ou quiosque ainda aberto, com  aqueles bebedores renitentes,  onde poderia encontrar comida... talvez até uma padaria, pois a fome estava me alertando sobre o vazio em meu estômago. Mas não havia nada! O som ecoava no vazio da noite e decidi parar o barco ao lado da balsa, sob um poste iluminado. Tomei dois goles de mel; era o que estava à mão naquele momento.
Um pescador se aproximou e "puxou conversa". Perguntou de onde eu vinha, de que era feito meu barco e coisas assim... e se eu achara os ventos fortes até então, é porque não conhecia o que haveria adiante! É que a proximidade do mar agora influenciava o rio e, na maré enchente, ele avançava por quilômetros, criando ondas mais fortes e mais altas, além do vento incessante.
Eram seis horas da manhã quando saí de Penedo. Já ventava um pouco e havia uma sucessão de ondas vindo em minha direção, mas eu progredia bem e não me importei com o esforço extra.
Às sete horas encontrei uma região belíssima - acho que o nome é Marituba" - com ilhas e margens cobertas de rica vegetação. Pela primeira vez desde Paulo Afonso eu voltava a ver e ouvir os pássaros! A água parou e as ondas desapareceram, como por encanto. Pois era assim que eu me sentia, encantado com aquele paraíso; reduzi a marcha e comecei a passear pelo rio, pura meditação em movimento... era como uma espiral, girando sobre si mesma, e escolhi o caminho mais longo para apreciar essa maravilha!
Alguns pescadores jogavam suas tarrafas e os peixes saltavam ao meu redor. Mas, aos poucos, percebi que boa parte daquele lugar já havia sido profanada! Nas ilhas, por detrás das matas, plantações de coqueiros; nas margens, depois da estreita vegetação, o gado tomava conta de tudo!
Sentia o cheiro de mata queimada e molhada pela chuva e, logo depois, uma grande extensão de terra desolada pelo fogo recente, os troncos enegrecidos e retorcidos, à margem do rio... o encanto se quebrou... ainda vi algumas belezas, como um trecho de areia branca, quase à superfície da água; depois uma enorme vegetação de algas submersas, balançando-se ao movimento do rio... e mais nada!
Voltei ao rio, normal e agitado pelos ventos. A chuva também voltou e temia não conseguir chegar a Piaçabuçu antes do vendaval. Já passava das nove horas e teria ainda cerca de 15 quilômetros pela frente, pelas marcações do GPS. O vento aumentou depressa e resolvi parar, pois estava exausto! Encostei sob umas árvores e fixei a canoa. Desci e limpei o lugar, pensando na possibilidade de pernoitar ali. Pelo menos não havia formigas, e tinha até uma minúscula praia para eu tomar um banho. Mas não tinha espaço para armar a barraca e teria que dormir no barco pela segunda noite consecutiva; isso me incomodava...
Aproveitei para colocar tudo em ordem: pendurei a toalha e a rede, tirei a água do barco, tomei banho e falei com minhas filhas, dizendo que poderia me atrasar bastante. Muitos barcos passavam por mim e confesso que tive muita vontade de "pegar carona" e chegar logo ao meu destino...
Segui adiante uma hora mais tarde, quando o vento diminuiu de intensidade. Estava perto de Brejo Grande, a última cidade de Sergipe antes da foz. Mas tive que parar novamente, pois voltou a ameaçar chuva e o vento aumentou bruscamente. Encontrei um abrigo e cobri a canoa com a lona do acampamento. Preparei um leite com chocolate e estava já decidido a ficar por ali mesmo.
Mas depois de algum tempo, perto do meio-dia, resolvi retomar a viagem. Lembrei-me das marés e pensei que, agora, na vazante, elas poderiam me ajudar, puxando o barco com a água do rio em direção ao mar. De fato, apesar do vento e de algumas ondas, o barco voltou a progredir e andar rápido. Era curiosa a ilusão óptica: remando contra as ondas, o rio parecia subir uma leve ladeira! Havia muitos aguapés nas margens.
Passei por um lugar apelidado de "Penedinho", uma espécie de clube de campo com várias casas, muitos barcos e até "jet-ski"! As propriedades colocaram cercas de arame farpado dentro do rio, impedindo os barcos de atracar! Um absurdo inaceitável! O rio é de todos, uma concessão de uso! No dia anterior eu tinha sido atacado por dois "hotweiller" em uma propriedade dessas, casa de luxo, talvez um marajá da era Collor... agora me mantinha distante da margem, por precaução...
Avistei Piaçabuçu às 13 horas. Bem antes de chegar à cidade, uma longa sucessão de barcos evidenciava uma vila de pescadores. O rio voltou a se agitar, mas agora, com essa visão de "fita de chegada" nada mais me seguraria! Remei intensamente, não me importando com as ondas que faziam a popa do barco se levantar e bater com força nas águas... até gostava desse barulho!
Cheguei a Piaçabuçu e observei o portal à frente, onde se descortinaria o mar... estava, finalmente, no final de minha jornada! Consegui vencer! Uma sensação indescritível!
Parei para me orientar e um pescador me informou que havia uma pousada logo à frente. Segui margeando a orla, que se contorcia à esquerda, alargando o rio antes de se lançar no oceano.
Muitos barquinhos coloridos estavam ancorados na baía, à frente de uma parede de contenção. Logo avistei a pousada e, finalmente, ancorei. Podia comemorar!
Estava completada a expedição que durou 99 dias de atividades intensas, três meses parado em Três Marias, cinco meses de planejamento, uma despesa enorme que consumiu todos os meus recursos e muito mais, e um ano inteiro dedicado ao rio que deveria ser tratado com dignidade, motivo de orgulho de todos os brasileiros.
No entanto, o sentimento que me resta é uma tristeza enorme pelo descaso do poder público em todas as suas esferas, a ignorância extrema de fazendeiros e pequenos agricultores, a falta de planejamento para a propalada revitalização, e o alarde eleitoreiro de uma grande obra que, ao invés de atender às carências dos ribeirinhos, levará as águas do Velho Chico para outras bacias do Nordeste, para as grandes cidades, para a agro-indústria, mas não para a população rural, de 12 milhões de pessoas, que continuarão dependendo dos carros-pipa para poder sobreviver!
A transposição não resolverá os problemas do semi-árido porque quem a projetou não sabe o que é o Sertão, como vive esse povo, do que ele, de fato, necessita para recuperar esse atraso tecnológico e cultural em que se encontra.
A sensação que eu tive ao visitar a maioria das comunidades, principalmente do oeste baiano, é de uma volta ao passado, cinquenta anos atrás, na época da minha infância. Casas de taipa, carros de boi, nenhuma oferta de cultura, economia de escambo ou predatória, pessoas sem perspectivas ou ambição, desemprego, intensos conflitos de terra, exploração da ignorância pelos apelos da fé e das promessas  de políticos corruptos, cidades que não tem receita para reverter esse quadro lastimável!
Com a falta de oportunidades e de emprego, os poucos filhos dessa terra que saem para estudar e conseguem uma formação superior abandonam seu lar ancestral e seguem para os grandes centros urbanos.
Centenas de minúsculas comunidades vivem nesse espaço sem perspectivas, e sua única ambição é um pouco de água, um pedaço de chão e condições de cultivar seus alimentos e cuidar da criação. Rezam para que a chuva chegue a tempo de molhar sua plantação para que possam alimentar sua prole que, não raro, se compõe de seis, oito, dez filhos, uma pequena criação de cabras, algumas galinhas, uns poucos porcos, uma ou duas vacas, todos criados soltos, partilhando de sua vida camponesa.
As "ONGs" que aqui atuam incendeiam esse cadinho de tensões sociais, que derrama sua lava nas lutas pela terra, sua ocupação e posse definitiva, conquistada, às vezes, sem eliminar os conflitos.
Algumas comunidades afirmam ser quilombolas ou indígenas para agilizar a pesada e ineficiente máquina federal, ainda que suas feições sejam as mesmas de todo o povo sertanejo, e quase todos tenham perdido a memória de seus antepassados, sua lingua ancestral, seus costumes, suas crenças, sua história, enfim.
A quem interessa essa pobreza imensa? Às igrejas de todos os cultos, que asseguram seus "rebanhos", aos políticos de todos os matizes, que a transforma em mote eleitoreiro na sucessão dos anos, aos movimentos sociais e às "ongs", que delas, as pessoas, fazem sua bandeira e sua luta. E, com isso, o semi-árido, verdadeira nação são-franciscana, se esfacela em um misto de fé inabalável e em sua única expectativa de redenção, depois desta vida...
E, com isso, o rio caminha para a sua própria morte, das águas, dos povos, dos animais e da vida em todas as suas manifestações naturais e selvagens. O que será desse povo quando o rio não for mais capaz de se sustentar e mergulhar na entropia irreversível da auto-destruição?
Talvez a culpa seja atribuída ao passado, mas é no presente  que agem, intensas, essa forças da destruição. E assim como os demais biomas nacionais, vamos dizimando a Natureza, consumindo as riquezas de nossa redenção.
Somos o país mais rico do mundo em bio-diversidades, em hidrologia, em miscigenação racial, em sincretismo religioso... mas não somos capazes de preservá-los e de utilizá-los como alavanca de um desenvolvimento verdadeiramente sustentável, sem demagogias ou mentiras.
Ainda assim, depois de transformar o meu Velho Chico em minha morada e paixão por tanto tempo, posso afirmar que esta foi a maior e mais intensa experiência de minha vida, em aprendizado, em transformações intelectuais, pessoais e definitivas.
Se saberei convertê-las em um produto cultural, se minhas palavras se coverterão em um livro, se esse livro influenciará pessoas e influirá em outros destinos, só o futuro me responderá.
Mesmo que nada mais aconteça, eu me transformei, perdi minhas poucas vaidades, fiz dessa expedição um processo peregrino e missionário, e influenciei meu futuro e meu destino. E posso afirmar que valeu a pena!
Faria tudo de novo?
Certamente, não! Porque assim como as águas que nascem da Canastra nunca são as mesmas, ainda que voltasse a cada uma dessas localidades por onde passei, e percorresse os mesmos caminhos, meus olhos já não seriam os mesmos e contemplariam tudo de modo diferente, mais amadurecido, talvez, menos extasiados, certamente, mas com outros sentimentos, diferentes até na perplexidade e no encantamento que só existem no primeiro encontro.
Sou, portanto, mais uma vítima desse rio, um apaixonado que vê a sua amada sendo estuprada pela ganância e pelos interesses mesquinhos e imediatistas que a levarão à morte inevitável e cruel...
Fiz a minha parte... e você?

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A chegada


Depois de 100 dias remando no leito do Rio São Francisco o canoísta João Carlos Figueiredo termina sua jornada fluvial e chega hoje finalmente no encontro com as águas do mar!
No momento o canoísta se encontra na cidade de Piçabuçu/SE e assim que tiver contato com a internet contará a todos como foi esse final da expedição!
Parabéns pelo sucesso na expedição!!!!!
Que bom que estará de volta trazendo essa riqueza de informações, registros e experiências de vida com você!

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